Narrativa de ficção

Uma Vida em Quarenta Dias

Romance – Thriller Psicológico – Drama – Suspense

Confrontando traumas e revelando segredos

Acompanhe um romance escrito a cada dia

Capítulo I – O Coma

A escuridão se esconde nas sutilezas e o diabo mora nas entrelinhas…

Os dois andares da casa, com portas e janelas fechadas, eram uma penumbra só. Na garagem, dois automóveis empoeirados e alguns pneus murchos. A biblioteca estava imersa em uma escuridão silenciosa e opressiva, quando Lázaro foi encontrado. Na estante, de madeira nobre entalhada com arte, os livros, com suas capas empoeiradas, pareciam testemunhas silenciosas, de um colapso que ninguém havia visto se aproximar. O ar carregava o leve cheiro, de papel envelhecido no frio do abandono. Lázaro estava desacordado, caído da cadeira de couro desgastado, numa ilha de luz, em meio a um continente de sombras. Ao seu lado, um frasco vazio de ansiolítico e uma garrafa de uísque tombada. O líquido âmbar em uma poça, juntava o álcool à amargura.

A equipe de primeiros socorros chegou rápido, suas botas de borracha, pesadas, ecoando no piso duro da biblioteca. O som da maca sendo posicionada, cortava o silêncio angustiante. A luz intensa das lanternas em seus capacetes, varria as prateleiras, preenchendo o espaço com uma urgência palpável. O líder da equipe, de colete azul fluorescente que brilhava sob a luz fraca, ajoelhou-se ao lado de Lázaro, a expressão endurecida. O frio do piso subia pelas pernas, intensificando a sensação de gravidade da situação.

— Ao chegar, o encontrei nesse estado, pensei que estivesse morto — disse a arrumadeira, as mãos tremendo, o rosto pálido.

Do lado de fora, o vento quente cortava os raios solares. A sirene da ambulância, de um tom agudo e intermitente, ecoava como um grito de socorro nas ruas movimentadas. Ao longe, o vapor multicolorido se erguia sob o calor de quarenta graus. Os pneus do automóvel aderiam ao asfalto exalando um cheiro de borracha queimada.
No interior da UTI móvel, o ambiente era apertado, com o cheiro estéril de cloro e álcool preenchendo o ar rarefeito. Dos instrumentos, refletiam luzes azuis, verdes e vermelhas, piscando sem parar. As mãos dos paramédicos, moviam-se rápidas e precisas.

— Pulso fraco, mas ainda estável. Precisamos mover rápido — disse o líder da equipe, com um tom de urgência que refletia a tensão no ar.

— Oxigênio pronto — respondeu outro paramédico, ajustando a máscara no rosto de Lázaro. O elástico da máscara apertava o rosto pálido e suado dele, que se movia levemente, como se estivesse tentando resistir à escuridão que o envolvia.

O som da sirene, aumentava à medida que a ambulância acelerava pela agitada Sete de Setembro. O giroflex, girava freneticamente lançando flashes de luz azul e vermelha, refletindo nos carros e prédios ao redor. Um espetáculo inquietante de cores. Os automóveis desviavam apressadamente, as buzinas soando em desespero. O caos urbano previa a emergência de uma vida suspensa. Pedestres paravam e se olhavam em consternado silêncio.

— O que temos aqui? — Perguntou um dos paramédicos, olhando rapidamente para o frasco de remédios. O cheiro forte de álcool do uísque, parecia misturar-se ao ambiente estéril da ambulância, — ingestão de medicamentos e álcool — uma mistura explosiva.

— Respiração superficial, mas estável por enquanto — disse o outro paramédico, com as mãos firmes nos cabos que conectavam Lázaro aos monitores.

O veículo de emergência virou na Avenida Floriano Peixoto, e o caos da Sete deu lugar a uma calmaria quase surreal. As árvores alinhadas na calçada, sob a densidade luminosa da tarde, abafavam o som da sirene. A sensação de urgência, se transformou em ansiedade constante. O hospital estava próximo, mas o tempo voava e a distância se arrastava. Cada segundo se alongando mais, e o coração de Lázaro lutava para continuar batendo.

— Pressão 90 por 60, está caindo — informou um dos paramédicos, sua voz baixa e carregada de apreensão.

— Vamos estabilizá-lo com soro — respondeu o líder da equipe, enquanto as luzes da ambulância, refletiam nos olhos semicerrados de Lázaro.

Ele estava afundado em um torpor para além do tempo. O bip do monitor e a vibração constante do motor, uniam-se numa só liturgia. Ao chegarem ao hospital, a claridade mortiça do interior da ambulância, deu lugar à luz ofuscante da entrada de emergência. O cheiro característico de produtos de limpeza e remédios, dominava o ambiente. Enfermeiros esperavam de prontidão. As rodas da maca estalaram no piso brilhante. O som seco se misturava às instruções, rapidamente trocadas entre os paramédicos e a equipe hospitalar.

— Paciente masculino, ingestão de psicotrópicos e álcool. Pulso fraco, pressão estabilizada com oxigênio e fluidos intravenosos — relatou o líder paramédico, entregando a ficha de Lázaro a uma enfermeira, que imediatamente seguiu ao lado da maca, seus olhos atentos aos monitores.

As luzes fluorescentes acima, piscavam preguiçosas. Lázaro era conduzido pela passagem tumultuosa. O cheiro penetrante e a suspensão do ambiente hospitalar, chocava-se com o vazio escuro, dentro de sua mente.

Lázaro, único filho de uma família humilde, foi criado apenas por sua mãe, e desde cedo aprendeu que a vida era feita de lutas constantes, nem sempre vencidas.
Aos vinte e dois anos, depois de finalmente entrar na faculdade de jornalismo, ele enfrentou muitos desafios que o obrigaram a interromper os estudos.
Aceitou trabalhos temporários e exaustivos, com horários conflitantes com suas aulas. Faltava-lhe ora tempo, ora dinheiro, mas ele nunca desistia e sempre retornava ao curso.
Naquele instante, ele estava ali, ouvindo a tudo e a todos, preso dentro de seu próprio corpo.

No corredor, Dr. Yosef Barenstein apressava-se para a sala de emergência. As mãos firmes e o rosto pálido, mas muito determinado. Ele olhou para Lázaro com uma mistura de preocupação e familiaridade, a gravidade da situação refletida em seu olhar.

— Vamos equilibrá-lo e fazer a lavagem gástrica! Tempo é essencial aqui — disse ele, mal escondendo a tensão na voz. A mão dele sobre o peito de Lázaro.

Na sala de emergência, o ambiente era sufocante. O bip constante dos monitores, o brilho das máquinas e o barulho dos rodízios metálicos, enchiam o espaço. Enquanto Lázaro, baldio, adentrava a selva da inconsciência.

E na recepção do pronto-socorr… a vida seguia seu curso…

Capítulo II – No Hospital

A mulher alta e esbelta se aproxima do balcão. Seus longos cabelos castanho-claros, emolduram um olhar angustiado. O tom de voz denuncia impaciência ao conversar com a atendente atrás do vidro.

— Olha, eu preciso ver meu marido agora. Ele foi trazido de ambulância – disse Martina, com a mão na pedra do colar, batendo leve e rapidamente, o pé no chão, e as unhas sobre o balcão.

— Claro, senhora! Um momento, por favor –respondeu a atendente, digitando rapidamente no computador.

— Qual é o nome dele? — perguntou, olhando para cima com os dedos ainda no teclado, o rosto sério.

O olhar da funcionária carregava uma calma, um mar sereno ignorando a tempestade que se formava à sua volta. Para ela, aquele caso era apenas mais um entre muitos, um eco distante na correria do hospital.

— Lázaro. Lázaro Luiz Conde — Martina respondeu rapidamente. Sentia a ansiedade crescer, exala forte o ar pelas narinas. ouve o murmúrio da espera ao fundo. O suspense refletido nos rostos, o desespero plasmado.

— Aqui está. Ele se encontra na UTI, no quarto andar. A senhora pode seguir por aquele corredor, e subir pelo elevador — indicou a funcionária, os cabelos presos num coque. O sorriso artificialmente reconfortante. Era máscara sobre a realidade do hospital.

No elevador, o trajeto parecia interminável para Martina. O número dos andares desfilando lentamente à sua frente, como um passo fúnebre. O solavanco da partida sentido no estômago, todos se olham de canto de olho, uma parada… a ascensorista de cara para o painel, mexe numa chave, outra parada… arranca e sobe como se passasse direto… uma parada brusca, um frio na barriga… Assim que as portas se abrem, ela caminha devagar até o final do corredor. O eco dos passos em sua mente, os ouvidos nos pés.

Uma das enfermeiras, ao notar sua presença, fez um gesto delicado de silêncio. Ela assentiu imobilizada, o olhar evasivo, sem compreender ainda muito bem, o que se passava. Um suor frio, as roupas coladas à pele por baixo do avental.

— Ele está estável, mas precisamos monitorá-lo de perto — disse a enfermeira de meia idade, em voz baixa, enquanto ajustava os aparelhos ao redor da cama.

— O que ele tem? – Perguntou Martina, tentando firmar a voz num murmúrio desafinado. As palavras se debatem na garganta.

— Ainda estamos investigando. O doutor Jacob está reunido com o neurologista e sua equipe, deve chegar em breve, ele poderá lhe explicar com detalhes — respondeu àa enfermeira ao sair, lançando um olhar compreensivo para Martina.

Com as palavras da enfermeira ainda ecoando em sua mente, Martina deu um passo hesitante em direção à cama. Sente à mão as batidas do coração.

As enfermeiras se afastam, ela se aproxima da cama. As lágrimas se cristalizam no rosto. Os olhos rápidos sobre o corpo do marido. Leva o pulso aos lábios, estremece.

O que de fato, acontecera com ele naquela biblioteca?

Som de máquinas que bipa. Passos apressados no corredor. O contraste com a quietude densa de seus pensamentos. Arruma a toca sobre o cabelo. Lázaro, ali inerte. Beija a face dele. O toque de sua mão fria, trouxe-lhe uma onda de memórias, à qual ela não pôde controlar. Era como se cada detalhe da vida, o que tinham construído juntos, estivesse sendo reescrito em sua mente.

A situação me atingia com uma força inesperada. A onda quebrando contra um rochedo. Meu coração, antes tranquilo, agora batia em um compasso diferente, acelerado. Parecia que o tempo, havia realizado um ciclo completo, levando-me de volta ao início de tudo.

Lembro-me de quando o vi pela primeira vez, naquele presídio. A escuridão dentro dele saía pelos olhos apagados. Sua voz era um grito por agarrar-se a vida, mesmo que na falta de suas forças. Sem perceber, eu fui tocada profundamente pela sua presença. Borboletas no estômago. Anos depois, eu estava lá, na sua formatura. Depois, no lançamento do seu primeiro livro. Observando-o sempre de longe… Mas eu o via à minha frente, uma versão transformada, irreconhecível. Sua luz era brilhante. Um Lázaro radiante, um sorriso que transbordava conquista. Não demorou, para que nossos caminhos, se cruzassem definitivamente. Sinto agora a magnitude de nossos encontros e desencontros passados. Uma longa luta entre a razão e a emoção… A paixão e a profissão… Coincidência ou não, hoje estou com a camiseta do “Outubro Rosa”, a mesma que usava há dois anos, durante a primeira ação preventiva realizada no Brasil. Ali, bem aos pés da Igreja Matriz São Paulo Apóstolo, onde nos demos as mãos para todo o sempre! Meses depois, saíamos da mesma catedral, montados num cavalo branco, acompanhados por um séquito de convidados.

As lembranças, lentamente se dissiparam, e a realidade, a cobriu com seu manto. A agitação do presente a trazia de volta, afastando-a dos momentos que tanto queria reviver. Discretamente, Martina passa os dedos sob os olhos. Sai em silêncio, ignorando médicos e enfermeiros apressados, e visitantes em busca de notícias.

Vozes abafadas, se misturam ao bip contínuo dos monitores cardíacos. Um som distante e perturbador. A fria luz fluorescente, reflete nas paredes brancas, deixando o ambiente ainda mais gelado. O cheiro forte de doença, a sombra da morte iminente, pesam em sua respiração arrastada. Em cada passo, o fardo calcado no mundo ao redor.

Da pequena sala de espera, se veem outros edifícios com suas janelas envidraçadas. São os olhos que nos sondam a alma, pensou Martina. Lá embaixo, no pequeno jardim, distantes gorjeios de pássaros, numa nostálgica melodia. Ela seguia absorta nas asas da lentidão. Do doce ao amargo, do passado ao presente…

Pedro Dantas… Como aconteceu? Por qual razão permiti que isso acontecesse? Falhei como profissional e como mulher…

Perdida em seus pensamentos, não percebeu os passos surdos se aproximando às suas costas. Uma voz familiar a tirou de seu devaneio:

— Como Lázaro está? – A pergunta, vinha baixa… de longe… e suas ondas, a tomaram de assalto. É Pedro Dantas, guardando o celular no bolso do paletó, a cabeça levemente inclinada.

O odor dos antissépticos, invade as narinas de Martina, lembrando-a da atmosfera opressiva, da imobilidade branca e tardia do hospital.

Virando-se, ela observa as flores frescas, protegidas silenciosamente, em um vaso na pequena mesa retangular, sob uma toalha azul. Um pequeno raio de esperança em meio à esterilidade do ambiente.

— Olha, ainda não sei ao certo, estou aguardando notícias — disse ela, afastando-se, o olhar baixo, buscando abrigo.

Nesse momento, o médico entrou e dirigiu um olhar significativo para Pedro Dantas. Seguiu em direção à amiga que o aguardava. Jacob, percebeu vagamente o comportamento de Pedro, mas não conseguiu entender do que se tratava. Havia uma tensão sutil no ar, uma conexão estranha entre eles que o incomodava. Ao encontrar Martina, Jacob a abraça calorosamente, e como um pai, afaga seus cabelos soltos, sedosos.

O semblante de Martina, fechado e denso. Seus olhos perderam a transparência. Uma ruga sob o seu olho.

Ela sofre, por preocupação ou culpa? Pensou o médico amigo.

— Olha, é muito bom saber que você está cuidando do Lázaro! — disse ela, olhando para aqueles olhos enigmáticos, por trás dos óculos de armação fina.

— Sou seu amigo e não poderia abandoná-lo agora — declara o médico, jogando um olhar investigativo para Pedro, tentando entender o desconforto que sentia.

Pedro, em silêncio, desvia o olhar de Martina para Jacob, num círculo lento. As mãos, uma no bolso, a outra estalando o dedo como num compasso.

Martina fez uma leve reverência em sinal de desculpas, e apresentou Pedro Dantas ao doutor Jacob Barnenstein. O médico, com um sorriso acolhedor, estendeu a mão para Pedro, que retribuiu o gesto de forma mecânica. O aperto de mão dele não parece natural, Jacob, não deixou de registrar mais esse detalhe.

Doutor Jacob, ginecologista obstetra de renome, é descendente de refugiados judeus que buscaram asilo nos Estados Unidos, antes de se estabelecerem no Brasil. Ele é o médico confiável de Martina há algum tempo. Eles se conheceram graças a Yosef e a Lázaro, ambos em uma situação muito delicada à época. Desde então, os quatro estabeleceram entre si, um vínculo de amizade inabalável. Embora a especialidade de Jacob não envolva diretamente o caso de Lázaro, ele acompanha a tudo, fazendo a ponte entre os médicos responsáveis e Martina.

Pedro Dantas e Lázaro, se conheceram na universidade. Lázaro estava no início do curso de jornalismo. Pedro cursava propaganda e marketing, em parte por causa de uma pequena editora herdada do pai, que havia se aposentado. O encontro entre eles aconteceu de maneira inusitada. Em um dos corredores movimentados da universidade, os dois se esbarraram. Foi uma cena quase cômica: Lázaro, com os cabelos caindo sobre o rosto e o nariz ossudo, notadamente quebrado, abaixou-se apressado, juntando livros e papéis enquanto pedia desculpas pela distração. Pedro, em resposta, abaixou-se para auxiliar e foi nesse momento, que ele notou um extenso manuscrito. O título chamou sua atenção imediatamente: Caminho de Volta.Interessantemeu velho!“, disse Pedro, ainda agachado, olhando para Lázaro com curiosidade.

Martina, tenta esconder a ansiedade na voz e o mal-estar no estômago. Com a voz muito baixa, pergunta ao médico:

— Afinal como ele está? Olha, seja sincero meu amigo – suas mãos tremem levemente, ela toca a pedra do colar. Desvia novamente o olhar de Pedro, que se aproxima.

Jacob folheou o prontuário, desviou os olhos por um instante. Parecia querer ganhar tempo antes de responder. Ajustou os óculos e disse:

— Estável, mas precisamos monitorá-lo atentamente — respondeu fechando o jaleco até o pescoço. Ajeitando o bigode, subindo os óculos com o dedo indicador.

Ele evitou o contato visual com Pedro, sabia que havia uma grande tensão entre eles, e não era apenas a preocupação com Lázaro.

Martina respirou fundo, olhando para o teto por um instante, antes de abaixar a cabeça. Massageando as têmporas com os dedos.

— Estável? Indica que não houve mudanças, que tudo permanece igual, sem oscilações para nenhum dos lados? — Questionou, gesticulando as mãos, a testa franzida.

Ela aperta a pedra, verde como seus olhos. Uma inquietação tangível a invade, mal conseguindo ser disfarçada.

— E qual é o perigo real que ele enfrenta? Seja direto, por favor – perguntou, fitando o médico com um olhar intenso, as pupilas dilatadas.

O tempo indolente fluía, quase estático. O ar estava preso na tensão que inundava todos os cantos do recinto. Jacob, fala com frases entremeadas de espaços, tentando encontrar a melhor maneira de dar a notícia. A voz de Martina estava repleta de urgência, o médico sentiu o fardo das expectativas sobre seus ombros. Ele suspirou antes de responder, desviando o olhar por um instante… Um longo silêncio…

— Sinceramente, não temos nenhuma certeza. Ele pode despertar amanhã. Ou talvez nunca mais retorne. — Sua voz era grave, perto de um sussurro.

Ele tomou as mãos da amiga, pretendendo confortá-la com o toque. Seus olhos pequenos buscavam os dela.

— Olha, não pode ser, ele sempre foi tão forte e saudável. Alguma coisa está errada! — Disse angustiada, andando em círculos com as mãos na cabeça.

A aflição dominava as palavras. Pedro Dantas, até então em silêncio, viu o desespero nos olhos dela e interveio, embora sua própria fala saísse trêmula e vaga.

— Há algo que possamos fazer, doutor? — indagou, os olhos vermelhos. Sua voz soa tensa enquanto estala os dedos, intentando controlar a ansiedade.

Ele se aproximou de Martina, ajudando-a a sentar na poltrona, embora o olhar dela permanecesse distante. Pedro é possuído por reminiscências…

As risadas frouxas de Lázaro. Nossos bate-papos nos bares… Nossas conversas e discussões em torno da composição do livro… a partilha… O brilho próprio do amigo! Não sei se o amei ou se o invejei… Até que ponto tenho sido seu amigo verdadeiro? — Pedro divagava ao mirar o nada. Os lábios apertados. As mãos nas costas endireitando o corpo.

Jacob olhou para Pedro por um instante mais longo do que o necessário. A maneira como ele falou. Aquele olhar parecia ter mais camadas. Nem tudo estava sendo dito ali. Pedro e Martina tinham mais do que ele conseguia captar. Jacob balançou a cabeça lentamente, com um ar grave.

— Todo o possível está sendo feito. Estou lidando com tudo com total empenho e dedicação — disse ele, soando mais como um amigo do que um médico. Sem conseguir disfarçar a nota de tristeza na voz.

Martina, incapaz de suportar a expectativa, o olhar marejado, sentiu uma forte necessidade de falar. Ela balbuciava entre o pranto e a trava na garganta:

— Olha, nos últimos meses ele tem agido de forma muito estranha. Anda retraído, uma aura de melancolia intensa, apático. Entendo que possa parecer loucura da minha parte, mas já o flagrei conversando consigo mesmo algumas vezes, como se estivesse discutindo com alguém invisível.

Jacob apertou os pequenos olhos pretos, fez algumas rápidas anotações, o som grave da caneta arranhando o papel deixava sulcos no silêncio.

— Você já pensou, que um escritor de ficção, talvez converse mesmo com seus personagens? — disse ele espirituosamente, tentando suavizar o clima da sala.

Mas a mente de Jacob permanecia em alerta. Captava detalhes que ele não sabia como encaixar. A dúvida se instalava em seu pensamento: O que eles estavam escondendo?

Colocou a caneta no bolso do jaleco impecavelmente branco e suspirou. Sentiu a paralisação do tempo em algum canto daquele hospital.

Pedro Dantas saiu, atravessando a porta com as mãos nos bolsos e os ombros encolhidos. O corredor parecia mais longo do que o usual, como se a gravidade do momento o estendesse a cada passo.

A quietude na sala paira como neblina. Os relógios do mundo estão mergulhados na ferrugem lenta. Sentimentos, memórias e pensamentos se misturam, num emaranhado que Martina mal consegue processar. A vida banalizada na ausência do clarão. Tudo o que restava era um gosto amargo na boca e a visão turva.

Jacob se aproxima de Martina mais uma vez, a mão firme repousando em seu ombro.

— Vá para casa. Procure descansar — aconselhou ele solidariamente, amparando-a pelas costas.

Ela o observou sair, os passos ecoando pelo corredor vazio. A porta se fechou e nenhum barulho se ouviu. A bolsa de Martina cai do colo ao chão, ela não se move. A cabeça abaixada, as mãos apertando os joelhos, estava toda ela em um estado de tensão. Os músculos retesados ao máximo. Sua mente girava em torno das palavras de Jacob. Uma sensação a corroía irrefreavelmente.

Quando finalmente decidiu sair, Martina apertou os olhos contra a claridade do dia. O relógio em seu pulso, um presente do último aniversário de casamento, marca o tempo de uma vida que ela mal reconhece. Com um suspiro pesado, ela sacode a cabeça, tentando afastar a nostalgia que ameaça invadi-la. Ela entra no Jeep prata. O motor ronca, e ela acelera, fugindo da realidade que insiste em perseguí-la.

Capítulo III – Na Antessala

Dias depois no hospital, o silêncio fundia-se à luz fraca, envolvendo o local em uma calma tátil. Podia-se pegar o ar com a mão, como se cada respiração fosse abafada em uma só camada. Doutor Jacob lançou mais um olhar ao redor. A tímida luz refletida na argamassa do edifício, amplia o peso da responsabilidade represada. Tudo em ordem, murmurou, seus olhos cansados se fixando no relógio. O tempo, com sua precisão indiferente, parecia desafiá-lo. Ao ajustar o lençol sobre o corpo de Lázaro, uma pontada fina e inesperada, atravessou-lhe o peito, como se a dor do outro se infiltrasse por suas veias.

Doutor Jacob, ao sair para o corredor, dá de cara com Pedro Dantas. O médico, calado e observador, antes de dar a mão ao cumprimento, olha-o de cima a baixo. Pedro parecia cansado, a notar pelas pálpebras dos olhos levemente caídas. O paletó sobre o braço e as mangas da camisa dobradas, davam-lhe um ar que, em se tratando de Pedro Dantas, era de desleixo. Jacob aperta a mão dele perguntando:

— Posso lhe ser útil em alguma coisa? — fala, ajustando os pequenos óculos, acentuando-lhe o olhar perscrutador.

— Cheguei de viagem há pouco e soube que o doutor estava aqui, preciso saber do estado de Lázaro — disse Pedro, com a mão sob o nariz, incomodado com o cheiro forte de remédios.

— Soube? — Jacob perguntou, erguendo os olhos. — Quem lhe disse? — emendou sem baixar o olhar.

— Martina, foi ela quem me disse — Pedro respondeu, desviando o olhar e, sem saber por que, ele teve a sensação de ter falado o que não devia.

— Martina… — ele repetiu o nome devagar acentuando o detalhe — muito bem — finalizou.

Jacob, tocando o braço de Pedro, o conduz à sala ao lado. Era preciso desobstruir a entrada da UTI. Ao entrar, Pedro olha para a Santa Isabel na parede, faz o sinal da cruz num gesto rápido. Jacob baixa a cabeça, em sinal de respeito, e permanece quieto. Pedro quebra o silêncio, e estalando os dedos e pergunta:

— O que pode ter acontecido à Lázaro para que chegasse a tal ponto? — Pedro põe o paletó na poltrona e se coloca ao lado do médico, diante da janela.

— Há uma série de fatores potenciais que se cumulam, e com o decorrer do tempo, resultam num momento crítico. Porém, no caso específico de Lázaro, parece-me que um fator mais pontual precipitou este momento — disse ele, enquanto limpava os óculos, ainda observando através do vidro, os edifícios em frente.

— Mas então, o que poderá ter representado esse transbordamento? — indagou, ressabiado, a olhar para os sapatos.

— Isto eu pergunto a você, que está quase todos os dias em sua casa. Você é o editor dele, não é? — Jacob virou-se com a mão no bolso do jaleco alvo, olhando-o firme, como se soubesse mais do que perguntava.

— Eu, só posso afirmar que… Lázaro tem andado muito… muito estranho ultimamente, fechado num mundo todo seu — responde olhando pro alto, divagando entre longos silêncios, as mãos nos bolsos. O que esse judeu está insinuando, falando assim comigo?Pensou Pedro.

— Ele está em atraso com você quanto à entrega de uns originais, não está? — Ele aperta os olhos ao alisar o pequeno bigode.

— Oh! Meu velho! O senhor está bem informado, hein? — ele sorri ao repetir o tic dos dedos, dando uma volta pela sala. Ergue a cabeça, olha por segundos em direção à Santa, baixa o olhar e volta-se ao médico.

Jacob, olha para trás procurando os olhos de Pedro e diz:

— A proximidade da Martina não é uma prerrogativa somente sua — e sem dizer mais nada, dá um aceno de cabeça e vira-se para a janela. Algo me diz que há mais entre esses dois… Jacob pensa ao olhar para fora.

Pedro, intrigado com aquelas palavras, corresponde ao gesto em despedida, e sai vestindo o paletó. Durante o trajeto até o estacionamento, ele se pergunta: Qual será a razão dessa antipatia gratuita do doutor Jacob em relação a mim? Do que ele sabe ou pensa que sabe?

Ainda na sala contígua à UTI, Jacob Yonatan Barenstein é tomado por um barulho mental, memórias desconcertantes. Relembrava agora, a leitura do relatório da equipe paramédica, recebido das mãos de seu filho Yosef, o neurologista responsável pelos cuidados a Lázaro. Também reverberava em sua mente ainda, as palavras do líder dos primeiros socorros: “Álcool e ansiolíticos…Pobre de Yosef, tão amigo de Lázaro! Yosef o tem como irmão e mestre, e se eu conheço a sua gratidão e lealdade, ele não descansará até que Lázaro retorne. Lázaro salvou sua vida, mesmo se pondo em risco de morte, e isso sem sequer conhecê-lo! Todos devemos a ele! Tenho a impressão, que ele está preso entre memórias distantes e distorcidas. Uma criança perdida em sua própria tempestade… Ele vai conseguir… ele sempre consegue. E se ele não retornar? Sabemos que a probabilidade desua volta é mínima. Tudo conspira contra. E se ele acordar? Como ele virá? Quais serão as sequelas? E esses medicamentos que deveriam ser controlados? Lázaro até então nunca necessitou de tal prescrição. O que estavam fazendo ali os psicotrópicos? E como ele os conseguiu sem receita e em grande quantidade! E Martina? E Pedro Dantas? Eles terão, direta ou indiretamente, algum envolvimento nesse colapso? Como Martina não percebeu o que estava se passando com Lázaro?

Perdido entre tantas perguntas sem respostas, ele volta ao presente. Caminhou devagar pela sala, sentindo o chão frio sob seus pés, como se cada passo desse em sua alma. Largou os óculos na mesinha ao lado, e desabou na cadeira. Com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos cobriram o rosto como se fosse uma cortina pesada. Os olhos se fixos nos sapatos pretos, lustrosos, silenciosos. Ali ficou, suspenso entre o passado e o presente, enquanto a mente vagava pelos erros e acertos de sua carreira. Mas agora, os erros pareciam mais pesados. A confissão a Lázaro, a sensação incômoda de ter sido parte do declínio do amigo, o corroía. Sua respiração, o único som que ocupando o vazio. Uma lágrima teimosa escorreu lentamente por seu rosto. Guimarães Barreto… Como pude ser tão imediatista e inconsequente? Por tão pouco vendi minha alma ao diabo! Conspurquei o amor e a confiança de Leah. Jamais, Yosef poderá orgulhar-se de seu pai e da memória de sua mãe… Elizabeth, Sophia, Jasmine… Doutor Jacob, move a cabeça lentamente, como se diante de um espelho partido. Seus olhos, desfocados, encontraram a imagem de Santa Isabel pendurada na parede azul-clara, irradiando uma paz que ele não conseguia alcançar. Passou o dorso da mão limpando a lágrima do rosto. Num suspiro profundo, ergueu-se com dificuldade, como se o peso do mundo estivesse em seus ombros. Pegou as chaves no bolso e, sem olhar para trás, saiu da sala em busca de um descanso que sabia ser inútil.

Enquanto isso, Lázaro permanecia imóvel, o corpo rendido ao nada. Por dentro, sua alma convulsionava…

Cada MEMÓRIA um espinho a perfurar-ME a consciência. VISÃO implacável… a própria VIDA. Enfrento a VERDADE… por tanto tempo. As pálpebras trêmulas. MÁQUINAS e vozes ao redor… desaparecem… quietude áspera. A ESCURIDÃO interrompida… a pele aquecida. A pulsação… vermelho… azul… AMARELO… dançam nas mãos. O DOCE… alfazema no ar… gosto amargo… alecrim na boca. Mergulho… PROFUNDEZA… inconsciente. Navego… oceano… tumultos… emoções… memórias. COSMO tempestade… astros… CHOQUE… incandescência de ESTRELAS. Rostos distorcidos… MÁSCARAS grotescas. A mãe… minha mãe… ANJO sombrio… SOBRE MIM. Olhos profundos… enigmáticos… amor e JULGAMENTO. Homens… imponência… fardas… exército DESCONHECIDO. Labirinto… corredores de ferro… grades… gélida… IMPENETRÁVEL… cela sem portas. PÁSSAROS negros… penas… facas… ATMOSFERA… força…sinistro. Rugem vendavais… paredes invisíveis… mente. Tormentas… implosão… RECESSOS ESCUROS.. alma. No caos… sólido… lembrança… CORRENTES. Líquido… mutável… movediço. Chão aberto… abismos sem fundo. SONHO… realidade… DESFAZ. Sem tempo… ETERNIDADE… angústia. Um paradoxo… vazio… luz COEXISTINDO.

Cenas de sua vida emergem entre sombras e memórias. Era um despertar por dentro, um desfile de momentos esquecidos, revividos como num filme tridimensional.

Capítulo IV – O Herói

O médico, bem vestido sob o impecável jaleco branco, e o estetoscópio vermelho ao pescoço é
O doutor Yosef adentrando à UTI. O ar denso e impregnado do característico cheiro de anti-sépticos e medicamentos o envolve. A cada passo, o piso frio e liso ressoa sob seus pés, amplificando o som do seu coração que parece querer escapar do peito. A luz fluorescente, fria e impessoal, ilumina a fileira de leitos, cada um deles um microcosmo de vida e morte. Acompanhado de dois enfermeiros, analisa minuciosamente o estado clínico do paciente Lázaro Luiz Conde. Após uma série de testes e exames realizados naquela tarde, ele faz todas as prescrições necessárias. Yosef dispensa os enfermeiros e se posiciona ao lado de Lázaro.
O quadrante da UTI é envolto em silêncio; a iluminação branca reflete no monitor cardíaco, marcando o ritmo lento e constante de Lázaro. A máquina de respiração artificial emite um som suave e constante, contrastando com a profunda quietude do ambiente.
O semblante sério de Yosef carrega um peso que transcende a mera relação profissional. Ele e Lázaro tornaram-se amigos íntimos, quase irmãos. Seus olhos se fixam nele, imóvel sob os lençóis brancos. A pele do amigo, antes calorosa e vibrante, agora exibe um tom pálido e sem viço. As máquinas ao redor emitem um zumbido constante, como um coro de insetos em um crepúsculo sombrio. Yosef aproxima a mão do rosto de Lázaro, sentindo a aspereza da barba por fazer e a temperatura gélida da pele. A cada respiração artificial, o peito de Lázaro se eleva e desce, um movimento mecânico que contrasta com a respiração profunda e tranquila que ele conhecia tão bem. Yosef passa a mão suavemente sobre o rosto pálido de Lázaro. Seus olhos, outrora vibrantes e cheios de vida, permanecem fechados, mas Yosef consegue quase sentir a presença do amigo. Um sorriso melancólico curva seus lábios enquanto ele recorda os momentos que compartilharam juntos.

Até hoje ainda não entendo muito bem o que se passa em mim, por meu coração, quando o assunto é Lázaro Luiz Conde, pensa ele.

Martina chega de mansinho à beirada da cama, põe suavemente a mão no ombro de Yosef. Ele, sem virar-se, estica o braço sibte os ombros dela, em acolhimento. Eles, sem trocar uma só palavra, permanecem por um longo instante em completo silêncio.

— Como está o meu querido Lázaro? — Martina perguntou sem poder conter as lágrimas.

— Nenhuma novidade ainda amiga. Pelo menos nada digno de comemoração — disse ele passando o dedo sob os olhos, o olhar nublado. Ele ensaia um gesto no ar mas interrompe, a voz emudece.

— E como você está Yosef? — ela busca nele o olhar de sempre, mas percebe apenas um vazio, olhos ausentes.

— Amiga, não está sendo fácil — disse ele, as mãos, da barba rala, descem firmes até o jaleco, como se quisesse passá-lo a ferro quente.

— Olha, eu mais ou menos imagino o que tem sido pra você. Além de tudo, ainda tem que cuidar dele no dia a dia — ela falou pondo sua mão sobre a dele na proteção da cama. Ambos olhando para Lázaro, ali de pé feito dois anjos de guarda.

Por trás dos olhos oblíquos de Martina, desponta uma mulher de modos refinados, apesar do despojamento dos seus jeans rasgados e as camisetas com mensagens de inclusão social. Ela evoca ainda a imagem de seu velho pai, o meritíssimo doutor Carlos Meira Torquatto a repreendê-la há anos, quanto à carreira que decidira seguir.
Psi-co-lo-gia?” É isto mesmo? No mínimo deve ser mais uma das suas maneiras de me afrontar! O pai um juiz federal, com uma filha psicóloga! Valha-me Deus! Filosofia, magistério, psicologia, isso é pra quem não tem condições nem competência para ir mais longe. Você está em outro nível da pirâmide social, pode avançar, até se especializar fora do país, em boas universidades. Você vai manter a tradição da família e registrar seu nome na história. Mas uma psicólogazinha…” Pois bem papai, eu vou estudar fora, posso até me doutorar, se isso satisfaz a sua vaidade, mas será naquilo que eu decidir para a minha vida. Eu posso contribuir para o meu país, sendo útil para a humanidade e feliz ao mesmo tempo. E o senhor? Fez o que realmente queria na sua vida? Ou apenas seguiu a tradição de seus avós? De quantas decisões, ou da falta delas, o senhor se arrepende? Quantos vereditos errôneos lhe pesam sobre o espírito agora? Essa é a grande vida que deseja pra sua filhinha? Eu já decidi, o primeiro lugar no vestibular já é meu, e não se fala mais nisso.

Ela havia suspendido a academia, cancelado alguns compromissos, adiado a outros, para que pudesse se fazer o mais presente possível. Nem tanto por seu marido, que tinha o seu próprio tempo e estava muito bem cuidado, mas, por Yosef. Ele não podia esmorecer agora. Não no momento em que Lázaro mais necessitava de seus conhecimentos, de sua abnegação.

Ali, junto a Yosef e a Lázaro ela volta ao tempo em que conhecera os dois numa situação semelhante de gravidade. Estava claro a ela, que o laço profundo que os unia, não se estabelecera apenas pelo fato de sofrerem juntos, por alguns dias, do mesmo infortúnio.
Os movimentos de Martina eram controlados, a fala moderada. Com um olhar analítico, sublinhado por lábios finos e apertados, acompanhava os movimentos e trejeitos suaves de Yosef. Sem nada dizer, ela enrosca seu braço no de Yosef, e o conduz para a sala de espera, onde ela já estivera por tantas horas, por tantos dias. Ao entrar, ela benze-se diante da santa, e segue com ele até a janela. O mesmo gorjeio, do que parece ser, o mesmo pássaro. A grama verde lá embaixo. Os olhos de vidro dos edifícios ao redor.

— Yosef, conte-me em que circunstância, você e Lázaro se conheceram. Eu sei aonde foi, mas também nunca soube dos detalhes. Você o conhece muito bem, ele é muito reservado com o que envolve outras pessoas — disse ela, ao cruzar as pernas, em pé, ao seu lado, enquanto segurava olhando a esmeralda do colar.

— Tenho o maior orgulho em falar disso, pensei que você nunca perguntaria — ele olhou-a com um breve sorriso, juntando as mãos, ao erguer os olhos pro céu.

— Olha, creio ser este o melhor momento. Será a nossa homenagem a ele — disse ela, persuadindo Yosef a falar, antes que surtasse.

Ele volta, em pensamento, ao amigo naquela cama, os olhos ainda fixos no teto.

A lembrança daquela noite na prisão o assombra até hoje. A adrenalina, o medo, o som das vozes gritando… E então, a figura de Lázaro, surgindo como um raio de esperança, enfrentando os agressores com uma coragem que o deixou sem palavras. A dívida que ele carrega por aquele ato de heroísmo é imensa.

Lázaro, você me salvou naquela noite, mas foi você quem realmente necessitou de um milagre. Eu jamais esquecerei o que fez por mim, e o que você representa na minha vida, Sussurrou ele.

— Bem amiga, para falar de algo do qual me orgulho muito, devo lembrar também daquilo que não me orgulho tanto — ele disse, passando a mão pela barba muito bem aparada, descendo pelo corpo até o bolso.

Doutor Yosef, olha o céu pelo vidro quase invisível, suspira fundo, e começa dizendo:

— Eu estava concluindo o quarto ano de medicina, na mesma universidade à qual Lázaro ingressaria depois em jornalismo. Na época eu estava perdido, meio desmotivado, em função de umas questões familiares… — silenciou ele.

— Quer falar sobre isso? — Martina interviu, se mostrando amiga.

Ela sabia que o amigo passava por um profundo conflito interno, um sentimento difícil, algo que o indefinia.
Ouví-lo a ajudaria compreendê-lo, mas o fato, é que tinha que ser no tempo permitido por ele.

— Não agora, obrigado! Mas possivelmente você virá a saber, assim como ainda mais pessoas também o saberão. — disse ele, levando a mão aos olhos como um tapa-sol — como eu dizia, nesse tempo comecei a misturar-me com uns amigos e, com eles, a cheirar cocaína também. E por azar, talvez por sorte, já na terceira vez, caí nas garras da polícia. Eu portava uma quantidade ínfima, para meu uso. Na cadeia, tentaram me extorquir, e partiram para a violência. Um inferno que ru nunca sequer havia imaginado — ele passa a mão pela barba fina, olha para o lado, tentando segurar o chôro.

Martina, estava conseguindo, aos poucos, abrir uma válvula de escape a toda aquela pressão em seu peito.

— Vamos lá meu amigo, você está em segurança. Olha, eu o quero bem e estou aqui para tudo — disse ela, pausadamente. Lembrando daquele garoto assustado, o olhar remexido.

Ele estremece, as lágrimas escorrem por seu rosto, quentes e salgadas, misturando-se à frialdade do ambiente. Um nó se forma em sua garganta, e Yosef percebe um gosto amargo em sua boca. As lembranças ressurgem como um filme:

As paredes da prisão fechavam-se cada vez mais sobre mim, o cheiro de mofo misturado ao suor e ao medo era insuportável. Rostos endurecidos de violência me encaravam. Em cada um uma ameaça de morte. O eco dos gritos e risadas cruéis preenchia o ar. Ali a fragilidade da vida era uma constante. Os homens se aproximavam, a adrenalina pulsava em minhas veias. Eu me perguntava como havia chegado a esse ponto, colocado ali ao lado dos predadores. As Vozes e os risos eram lâminas afiadas cortando o silêncio da prisão. Um jovem magro com tatuagens cobrindo os braços, cuspiu no chão.

“Tá fudido, moleque!”, ele rosna, sua voz carregada de ódio. “Achou que ia se dar bem, é? Vai ver como é que é!”, ele ameaça, aproximando o rosto de mim. Seu hálito fétido de bebida e cigarro ardia nas minhas narinas. Eu, pequeno e franzino, com esse nariz proeminente, os olhos fundos, naquele momento, encurralado contra a parede por quatro homens. O cheiro acre de suor e medo pairava no ar. Um ferro pontiagudo contra o meu peito, a lâmina fria e ameaçadora riscava minha pele. Eu sentia o gelo antecedendo o corte que viria a seguir.

Lázaro, que até então observava a tudo em silêncio. O vozerio, a movimentação feriram olhos e ouvidos. Com um grito, ele se lançou na minha direção, seu corpo como um escudo contra a fúria dos criminosos.

“Ei, pessoal, vamos resolver isso de outra forma”, exclamou Lázaro ao se aproximar do grupo, sua voz firme, mas trêmula. “Desse jeito, só vai ficar pior, né? “, Enfatizou, num tom conciliador, tomando coragem diante da cena ameaçadora. “E é você que vai fazer piorar seu filho da puta?” Berrou o que portava a arma, avançando em sua direção com sangue nos olhos e um hálito de enxofre na voz. Lázaro enrijeceu o corpo. Num golpe repentino, segurou o pulso do agressor e torceu seu cotovelo. O som metálico do ferro batendo no chão ecoou na cela, Lázaro o prendeu sob o pé. Seu braço direito abraçou o pescoço do oponente. O seu um metro e noventa de altura lhe deu certa vantagem. Uma cotovelada dele atingiu a testa do segundo que se aproximava. Os outros dois, que até ali me seguravam, correram na direção de Lázaro. Acertaram-lhe o nariz, o estalo de osso quebrado. Um jorro de sangue manchou o chão de concreto, misturando-se com o cheiro forte de urina que impregnava o ambiente. Lázaro contraiu o rosto, a dor era visível; ele não desistiu. Continuou a golpear e a defender-se a socos e pontapés. Quase vencido, preso contra a parede, Lázaro com os olhos aflitos e a boca entreaberta, era soqueado e chutado sem trégua. “Tá pego, seu bosta. Te meteu onde não devia. Tu vai se arrepender de ter nascido, seu viado”, bradava um deles, atingindo-o com um golpe no estômago. “Vai ver, tá querendo casar com a bichinha aqui. Vai morrer, seu filho da puta”, esbravejava o que atingira-lhe a costela, os olhos brilhando de ferocidade.
A porta se abriu num estrondo, o som das botas pesadas invadiu o corredor. No caos, o berro do carcereiro ressoou como um trovão. Ele entrou na cela, e dois policiais se postaram à entrada, de armas apontadas. “Todo mundo encostado na parede aí agora, bando de ratos. O que é que as bonecas estão se arrancando os cabelos? Quebraram as unhas, é?” Gritou, sua voz áspera cortando o ar como uma faca. Lázaro, com o sangue escorrendo do nariz quebrado, mal conseguia firmar-se em pé. O corpo arcado, as pontadas nos rins e nas costelas, a dor aguda retorcia o semblante. A voz do carcereiro estrondou novamente: “Essa daí é a tua mulherzinha, é? É por isso que não quer largar dela?” Vociferou o agente, empurrando dois dos sujeitos para os militares. Lázaro, então relaxou o braço da gravata, e o indivíduo caiu desmaiado, num baque surdo ao chão.

Cambaleante e ensanguentado, Lázaro é levado para o ambulatório. Eu, ainda atordoado, chorava. Em pensamento, agradecia a bondade inesperada, em meio áquele inferno. Após a confusão, fomos divididos em duas celas lado a lado. Os quatro agressores estavam em uma, Lázaro e eu, noutra. O cubículo era um quadrado de cerca de seis metros. Dois beliches de concreto, cada um com duas camas. Um corredor ao meio. Aos pés de um dos beliches, uma privada aberta, que se usa de cócoras. O odor nauseante de excrementos dominava o espaço. Invadia as narinas até o cérebro. O aroma da comida, tragado pelo odor daquela latrina, uma mistura de podridão e desespero. “Mas com três dias se acostuma,” era o que diziam por ali, como se a brutalidade assimilada do ambiente fosse algo natural.
Os presídios brasileiros, superlotados e em condições desumanas, transformam a vida dos detentos em uma luta diária pela sobrevivência. A violência e a extorsão se tornaram regras não escritas. Não fosse pela intervenção de Lázaro, eu seria mais uma vítima fatal nas estatísticas; nesse ciclo de crueldade e desesperança.
Enquanto os gritos se dissipavam, uma aparente calmaria se instalava. Eu senti uma onda de gratidão e culpa. Lázaro havia arriscado tudo por mim, e agora eu precisava encontrar uma maneira de honrar esse sacrifício.

— Bem, aí está, gora você sabe quão grandiosa é minha dívida com seu marido. Daí em diante você conhece a história melhor do que eu.

Martina olha para o alto, depois para o pulso, ergue o braço de Yosef e, constata que o relógio de parede está atrasado em sete minutos. Sorri, correspondida pelo médico.

— Já está escurecendo amiga, eu a acompanho até o seu carro. Essa região não é muito segura fora do hospital — disse Yosef a colocar o estetoscópio no bolso do jaleco. O olhar sereno, inalando o perfume suave de Martina.

— E Lázaro… eu… — silenciou ela.

— Não se preocupe. Eu tornarei a vê-lo daqui a pouco. Quero agradecer pela sua carinhosa atenção. Você com o marido enfermo, tendo de tratar do médico — ele sorriu a coçar a barba baixa, caminhando, o corpo ereto.

— Olha, nós apenas conversamos. Amigos são para essas horas. E o que você me confidenciou hoje, deixou-me ainda mais orgulhosa de vocês dois. Use essa memória como um amuleto de sorte — brincou Martina, ao descer os primeiros degraus para a saída, tirando as chaves do bolso.

Yosef a segurou pelo braço, olhou bem no verde de seus olhos, ela segurou na pedra verde, devolvendo o olhar.

— Martina, muito obrigado! Achei mesmo que fosse surtar a qualquer momento. Mas agora sinto-me bem. Sou-lhe grato amiga! — disse ele, descendo o restante da escada com ela, em silêncio.

Doutor Yosef, após acenar para a amiga, vencendo a escadaria, caminha pelo corredor e pondera: Não é à toa ser mulher de Lázaro! O médico, após alguns afazeres, conforme o prometido, retorna à UTI.

Yosef acaricia a mão fria de Lázaro, a pele macia e úmida contrastando com o calor da sua. A cada batida do coração artificial, uma agonia percorre seu ser. O zumbido incessante dos equipamentos médicos e a cintilância que vem do teto criam uma atmosfera surreal, como se estivesse preso em um pesadelo. O vermelho ardente do tubo de oxigênio, ligado aos pulmões. Um estigma cruel da fragilidade humana. A sombra projetada pela janela alonga a figura de Lázaro, formando uma silhueta triste e melancólica. Yosef sente um nó na garganta. Uma lágrima solitária no rosto, mistura-se ao úmido silêncio no ar.
Por momentos as pálpebras de Lázaro saltam, estremecem… Quantas lutas travadas em sua alma nesse instante…

“Oceano de INCONSCIÊNCIA. Paisagens oníricas. Cores vibrantes entrelaçadas. Uma paleta HIPNÓTICA. Sons distorcidos ecoam. FORMAS erguem-se do nada, se transformam, se dissipam… DANÇA frenética de REALIDADE e SONHO. Fragmentos imemoriais. Fantasias. Mosaico de emoções contraditórias. AROMA de flores mortas e metal enferrujado. O GOSTO do SAL em sua boca. Árvores de cristal florescem em um céu de TINTA. Rios de mel e veneno serpenteiam pelo chão. LABIRINTO. O SOL, um olho gigante, observador, implacável. Areia quente em seus pés. SOMBRAS…”

Bem, continuemos agora, com Lázaro, antes do coma. E assim, você leitor, será testemunha desse percurso, passo a passo, enquanto Lázaro, durante o coma, revisa a sua própria história. Voltemos alguns anos no tempo…

Capítulo V – A Universidade

A cantina da universidade pulsava, um reduto de vida e energia onde centenas de alunos se aglomeravam. O som das vozes se entrelaçava em um coro de risadas e conversas animadas, ecoando pelo espaço como uma sinfonia caótica. Os alunos conversavam animadamente, e entre sussurros compartilhavam segredos.
O cheiro dos lanches na chapa e os pastéis quentes que saíam da cozinha, se misturavam ao som dos liquidificadores e espremedores de frutas.

Para mim, a atmosfera vibrante parecia distante, como se estivesse olhando a cena por um vidro embaçado. Sentia-me como uma gravura colada por cima de tudo. Somos todos iguais, perante a lei. Tô cansado de ouvir isso. Esta “igualdade”, assim como eu, também foi colada feito máscara. Eu não pertenço a essa classe, ela também não pertence à humanidade. Pelo que posso ver aqui, tudo compõe um imenso circo de dominação simbólica.

— Não sei o que você vê, em um cara de vinte e seis anos que nem sequer passou da metade do curso — ironizei , afundando os ombros enquanto o peso do desânimo caía-me no rosto.

Os risos e falas ao redor tornavam-se apenas murmúrios. Um fundo sonoro que contrastava com a minha frustração crescente. Apoiei-me na mesa, os dedos brincando com a borda da bandeja. Buscando um fio de motivação que parecia escapulir entre os dedos. Daqui sairão muitos profissionais, competentes ou não, isso já não importa quando se tem um título. Um carimbo… isso, o carimbo seguido de uma assinatura de alguém que você nunca viu, e que também nunca foi visto por ele, valem mais do que a prática e toda a mestria adquirida numa vida inteira. É tudo um faz-de-conta. Um marco divisório entre o dominador e o dominado. E não chegamos até aqui pelo caminho da evolução natural dos fatos. Não, isso fora muito bem planejado por uns poucos que se perpetuam no poder.

— Provavelmente, eu considero este homem mais sofisticado e cativante, viu? — riu Jasmine, entrelaçando suas mãos nas minhas. Sentindo o calor das minhas mãos grandes , como se cada linha de minha palma contasse uma história de luta.

— Ser um perdedor não tem encanto algum, né? — Rebati, esboçando um sorriso. Meus dentes alvos, destacando-se contra a incerteza em meu olhar, ao encontrar os olhos azuis de Jasmine.

Os alunos, imersos em suas próprias realidades, moviam-se rapidamente entre as mesas, gesticulando animadamente. Mesas de material sintético, já marcadas pelo uso, eram cobertas com bandejas de comida e copos de polímero. O toque áspero e frio do plástico contrastava com o calor do corpo dos estudantes que se apertavam ao redor. Eu devo ser um louco. Todos ao meu redor felizes e satisfeitos, e eu aqui sofrendo, me debatendo. É só não pensar. A ordem é: não pense. Pensar é prejudicial à saúde mental.

— Pare de se vitimizar e olhe ao seu redor. Veja que, mesmo nadando contra a maré, você está aqui. Já pensou que muitos nem chegam onde você chegou?

Respirei fundo, endireitando as costas como se eu quisesse respirar um novo fôlego de vida. O problema não é o ser, é a consciência de o ser que machuca. Este mundo é feito para quem não tem consciência. O fato de se ter consciência do que se é, e da onde se está já é o suficiente para doer na alma.

— Olhando por essa ótica, você até que tem razão — eu disse, deslizando a cadeira para mais perto de Jasmine, buscando conforto em sua presença.

— Eu sei que tenho razão! Eu sempre tenho, viu? — Jasmine arrumou o decote da blusa lilás, que abraçava o corpo destacando os seios. Seu perfume, suave e envolvente, parecia flutuar entre eles.

As tonalidades intensas das roupas dos universitários, se mesclavam em um caleidoscópio visual: camisas de times, vestidos floridos, jeans rasgados e mochilas de diferentes estilos. Cada grupo formava uma bolha própria de intimidade, rindo e debatendo sobre provas, festas e relacionamentos. Uma tapeçaria de experiências que se entrelaçavam. As camisetas pretas com o distintivo vermelho dos funcionários, já estavam suadas devido ao esforço para anotar e entregar tantos pedidos. Olhe só que maravilha! Nós somos todos livres! Podemos usar as estampas e cores que queremos. Podemos nos enfeitar e sair por aí feito palhaços. Está tudo bem, tudo é permitido. Só não podemos é decidir, só isso, é pouca coisa. Quer saber? Vou me transformar num filhote de hiena, seguir rindo de tudo e de todos. Rir principalmente dos de baixo, porque os de cima não me permitiriam isso. Há um marco delimitatório do qual, não poderei passar.

— O que me dá raiva, é ver esses playboyzinhos que nunca passaram por dificuldades, né? Eles brincam de estudar e se acham o máximo, sem nunca terem sentido o peso da vida — resmunguei, olhando ao redor por entre as mesas. Cocei barba espessa, sentindo a aspereza dos fios entre os dedos.

Jasmine me observou com carinho, seu olhar não me deixava escapar. Ela colocou os cabelos de lado, revelando o pescoço pálido. Suas palavras saíam como um sussurro firme:

— Todos os dias, me apaixono pelo homem que você é, pela força que carrega dentro de si — disse ela após morder o lábio inferior.

As palavras de Jasmine pareciam distantes para mim. Rocei a testa com os dedos, perdido em memórias que insistiam invadir- me a mente. O som da cantina começou a se distorcer e desvanecer, dando lugar a um cenário muito mais sombrio e sufocante.

De repente, eu era novamente um menino.
Um cheiro acre de suor misturado ao sangue pulsava no ar. Não mãezinha, tá machucando meu braço… Pelo braço, a mãe me segurava, e o som do couro cortando o vento antecedia cada cintada. Pára mãe, não me bate, eu vou vender mais… As tampinhas de garrafa viradas sob meus joelhos nus, perfurando minha pele. As palavras dela vinham como facas: “O que vai ser de ti, hein? Tu não serve pra nada! Nunca será nada na vida! Tu é um imprestável, guri! Vem aqui, quero te bater, guri de merda.” A dor e a humilhação vinham em ondas, e o sonho de fuga era minha única esperança.

— O que houve? Você está bem? — A voz de Jasmine trouxe-me de volta, macia, o olhar alerta, tocando-me no braço, tentando resgatar-me de minhas lembranças.

Chacoalhei a cabeça, como se estivesse tentando afastar as imagens, que flutuavam em minha mente, jogando-as para o fundo, para um lugar aonde jamais voltassem.

— Sim, sim! Estou bem! — agitei a cabeça, movendo-a em gestos curtos e rápidos, como se pudesse sacudir as memórias para longe.

— Viu? Vamos sair daqui? — sugeriu Jasmine, levantando-se ao som de cadeiras se arrastando no piso.

Assenti com um meneio de cabeça. Estava alheio e longe, parecia não ver ninguém. Jasmine tomou minha mão e me conduziu para fora da cantina, que estava movimentada com sua profusão de vozes. Ela me leva, até um dos bancos do gramado, circundado por pequenas árvores decorativas. Uma borboleta de asas vermelhas voava por ali, enquanto uma pomba azulada arrulhava ao longe. Lufadas breves de vento agitavam as folhas verdes dos arbustos.
Os pelinhos do meu braço se arrepiam. Entre os dentes, o sabor de um talinho verde, colhido ao lado do frio banco de cimento. O cheiro de terra e grama molhada, ainda é da chuva há pouco passada. Um oásis naquele aglomerado de edifícios erguidos desigualmente, já estranhos ao projeto original da universidade.

— Você é muito especial para mim Lázaro, eu o amo – Jasmine falou quebrando o silêncio, sentando bem junto a mim, ombro com ombro, joelho com joelho.

— Então é verdade? Que o amor é cego mesmo, né? – falei rindo ao inalar o cheiro de rosa no pescoço de Jasmine.

— O amor pode ser cego, mas enxerga no escuro, viu? — Disse ela, prendendo o cabelo no alto da cabeça, revelando a brancura de seu pescoço, marcada por alguns fios soltos.

Pendi a cabeça e a beijei no pescoço, lendo-a através dos gestos. Mordi de leve a orelha à mostra, envolvi-a com o braço sobre os ombros. A fitei nos olhos semicerrados, a boca úmida e vermelha de batom. Nossos lábios se aproximam, se tocam. As línguas imigram entrelaçadas. O gosto de hortelã, bate na sede de beber um no outro.

O vento suave, parecia sussurrar segredos antigos nos ouvidos de Jasmine. Ela olhava para a grama verde… A brisa em sua pele, a sensação de leveza, a levando ao passado…

Meu pai, um homem simples e trabalhador, fez tudo o que podia para dar uma vida digna às duas filhas. Eu, desde pequena, já demonstrava uma paixão clara para o jornalismo. Na infância, em casa, eu transformava os visitantes em minhas cobaias. Com uma escova de cabelo, eu entrevistava e fotografava a todos, como se fosse uma repórter de verdade. Minha família sempre ria e aplaudia minhas atuações, orgulhosa do meu talento que despontava tão cedo. Agora aqui estou, prestes a me formar, como todos sempre acreditaram que eu faria.

Mas a vida, como sempre, guarda suas próprias surpresas. Como poderia alguém prever o que viria a seguir?

Capítulo VI – O Editor

Entrei na lanchonete XV de Novembro. Cumprimentei o gerente e me dirigi para os fundos, até o reservado. Soltei os livros sobre a mesa. Consultei as horas no relógio, de mostrador branco, à parede, e sentei-me. Aguardava impaciente a chegada de Simão Pedro Dantas. O que será de tão importante que Pedro tem pra dizer? Parecia eufórico ao falar no telefone.

Senti o cheiro do queijo derretido dos pastéis fritos na hora. As mulheres das lojas ao lado sentam-se às mesas para o lanche. O burburinho das conversas como uma reza sob o som do espremedor. O suco das laranjas tinge a luz da tarde que diminui a cada passo mais para dentro do estabelecimento.

Desde que nos conhecemos, num dos corredores da universidade, ficamos amigos. Sabe aquelas amizades instantâneas e intempestivas? Foi algo assim! Relembro o olhar de espanto de Pedro, ao ler num maço de papéis, o título Caminho de Volta. Parece até que foi ontem, mas já se foram dois anos que o conheci e desde então ele tem se mostrado um grande amigo. Sentado, com uma das mãos sob o queixo, eu revisitava algumas cenas…

“É meu velho, meu pai resolveu se aposentar, agora sobrou tudo pra mim naquela velha editora. Tenho que dar conta do recado. Vou injetar sangue novo no mercado editorial, pra isso estou me preparando muito bem. Administrativamente aprendi muito com papai. E aí meu velho, quando vai acabar o Caminho de Volta?” Dando um forte tapa nas minhas costas, a gargalhar. Vai te foder cara! Pensa que minhas costas são o quê? E ademais não tem livro algum né? Eu respondi indignado, até me pôr a rir também. “Ora, ora, se não tem, por que escreveu tudo aquilo?” Rebateu ele, fitando-me com seus olhos acinzentados, as mãos nos bolsos. Aquilo foi só uma fase, nada importante, eu disse olhando pra frente, realçando ainda mais a deformação no nariz, marca que levarei até o fim da vida.

Eu ri sozinho, concluindo mentalmente:

E não é que ultimamente tenho pensado seriamente em retomar à escrita! Filho da Puta desse Pedro, parecia estar prevendo isso, ou quem sabe ele, de tanto me encher o saco, tenha me convencido.

Num sobressalto, retornei ao ambiente da lanchonete, ao ouvir a algazarra de Pedro:

— Aí, meu velho! Aí está você fulaninho! O Lázaro e os livros… Desculpa o atraso — disse Pedro Dantas, rindo, ao se aproximar da mesa, e puxar uma cadeira para apoiar a maleta.

Pedro Dantas tira os óculos de sol mostrando o cinza escuro dos olhos, afrouxa o nó da gravata, pedindo dois uísques à garçonete.

— Não sei como consegue beber a esta hora – ri, ao levar a mão aos cabelos longos, os olhos negros.

— Fique tranquilo, meu velho. Esse é só o primeiro de muitos — respondeu ele, rindo alto e estalando os dedos, antes de puxar uma pasta de couro.

— Pelo visto não viemos só para beber né? O galã aí veio de terno e gravata! Então, qual é a boa ou má notícia que trazes? – ironizei sorrindo, enquanto se acomodava na cadeira.

— Passei a noite reanalisando aquele seu original, o Caminho de Volta, e quer saber? Você vai escrever meu velho! — falou abrindo a pasta e retirando o material, esticando os lábios, cara de sério.

— Não me diga isso! Pois eu estava pensando mesmo em dar uma melhorada nele! — disse eu, espantado pela coincidência.

— Melhorada coisa nenhuma velho, você vai é reescrevê-lo! Pelo que conheço da tua história, você tem muito mais a dizer! — disse em tom de autoridade, brincando com os cubos de gelo restante no copo.

— Paraí né? O que é que você quer dizer? — indaguei, ao endireitar o corpo, formando rugas na testa.

— Eu exijo tudo, toda a sua história. Você será capaz disso? — inquiriu ele, olhando sério agora para o amigo, estalando os dedos, como se marcasse o tempo.

Pedro Dantas, ergueu o copo em direção à garçonete, pediu outra dose. Eu mal bebericava a minha, ainda incrédulo.

— É meu velho, isso pode ser o nosso ponto de virada! Só precisamos conversar sobre umas passagens muito importantes — disse, inclinando-se para frente, com um brilho de excitação nos olhos.

— Lá vem você, com essa mania de editor, mudar tudo o que escrevi – disse, desconfiado, coçando a barba contrariado.

— Em absoluto meu velho, não tô mudando nada, disso tudo aqui só aproveitaremos o título. Teu material é bom, mas é só um bater de asas e nada mais. Eu quero é o voo completo, entendeu? Mostre a cara sem medo e diga para que veio. Sem isso não há livro. Eu sei do que estou falando e sei do que você pode. E você pode muito mais! — Pedro olhou sério, ao levantar a cabeça para me ver pensativo, a coçar a testa, olhando para o chão.

— Mas quando você diz “tudo”, se refere ao quê especificamente? Ao azarão que sempre fui na minha vida? Ao cara que só fez cagada ou ao merda que nem é capaz de terminar a bosta de uma faculdade? — eu disse alterado batendo na mesa, o rosto vermelho, os ombros caídos.

Ao trazer o uísque, a garçonete, uma moça robusta, de bochechas rosadas, olhou para o meu lado, num misto de admiração e medo. Eu me desculpei, olhando bem nos seus olhos castanho-esverdeados, enquanto um turbilhão de emoções fervia dentro de mim.

Pedro, meneou a cabeça num gesto de agradecimento à mulher, voltou-se para mim e enfatizou:

— Tudo é tudo, velho. Infância, sua mãe, seu pai, as drogas, a prisão, a clínica, tudo. Por favor, seja macho e não deixe nada de fora. Mostre-se nu como veio ao mundo. Você tem essa coragem? A caneta e o papel serão o seu divã de psicanálise. Ou você tem medo? — disse Pedro em tom desafiador, encarando-me direto, de modo sério e provocador, ao esvaziar o segundo copo.

Olhei para baixo, as palavras de Pedro ressoando em meu ouvido quase como tortura.

— Medo? Claro que não, né? Tudo o que passei deverá servir para alguma coisa, não acha? – eu disse, enquanto descruzava as pernas, arrumando o colarinho da camisa, buscando me recompor.

Todas as imagens de drogadição, as cenas humilhantes com minha mãe, a prisão, o passado em sua totalidade enfim, um fantasma que aterroriza o meu presente. Um flash na memória, uma imagem recorrente, outra cena ainda insistia:

“Parado aí. Encosta na parede. Ponha as mãos pra trás. Quieto aí ô pilantra. Eu faço as perguntas aqui.” Levei um tapão na orelha, o policial civil mostra nas mãos o pequeno embrulho plástico. “Tô te cuidando a tempo, traficantezinho de merda. Olha isso aqui… Quieto e andando, vamos conhecer o nosso hotel, tu vai adorar seu porcaria.”

Volto a refletir sobre a proposta do livro.

Escrever tudo isso, pode até alavancar minha carreira como escritor. Mas e daí, conseguirei depois escrever outro livro? E o quanto um livro desse poderá abalar a credibilidade necessária de um jornalista novato? Isto é, se eu me formar, né? Preciso muito do dinheiro que pode vir daí, é certo. Mas isto depende do sucesso da obra. E mais, e o principal, necessito muito que algo dê certo em minha vida. E se não der certo? Tudo ainda poderá ficar pior?”

Tentei afastar os pensamentos e retornar à realidade. Olhei para o relógio, silencioso à parede, parecia observar-me, gritando o quanto ainda há para viver… Eu coço a testa. O corpo tenso a doer. Sinto minar em minha pele um suor frio. Um aperto no estômago. As mãos úmidas e frias.

Pedro Dantas, sorve o uísque devagar, saboreia o sabor do malte. Em silêncio, me olha solidário, imaginando o inferno no qual estou mergulhado agora. “Eu conheço parte da vida de Lázaro, e só a parte que conheço já não foi fácil. Sei que suas marcas são profundas, e as dores, crônicas. Mas em contrapartida, ele tem tudo o que eu não tenho, e talvez jamais venha a ter: força e brilho próprios! Agora ele tem pouco, mas o que tem é dele, e só dele. Comigo é tudo diferente, o que tenho é o que me fora dado.”

Atrito testa com os dedos, jogo os fartos cabelos negros para trás. Dilato os olhos, gesticulo a mão direita mandando algo imaginário para bem longe.

— Ah! Que se exploda tudo! Já começou tudo torto mesmo né? Se der errado mais uma vez, pelo menos mamãe, esteja onde estiver agora, ficará feliz a repetir sua maldita cantilena: “viu, eu disse que você não daria em nada, você não tem serventia pra nada, não sei como fui parir isso” — repeti decidido, entre raivoso e gozador.

Endireito o corpo, recuperando a postura. Pedro, mantém a mão apertando meu ombro. Um símbolo de fraternidade e parceria. Olho para o editor, pouso minha mão sobre a dele, e decididamente respondo:

— Escrevo! Vou escrever! Lázaro Luiz Conde não é homem de mi-mi-mi. Eu pago pra ver – ei disse, num ímpeto próximo da fúria, dei outro soco sobre o tampão da mesa.

A garçonete, atrás do balcão, desta vez apenas sorri, e corando as faces, esconde o rosto.

— Então tá meu velho! Já sei até qual público alcançar, qual o nicho de mercado explorar com Caminho de volta – comemorou Pedro pedindo outro uísque – agora você me acompanha no brinde – disse estalando os dedos.

Ergueremos um brinde ao novo livro que sairia dali, Pedro me abraça e declara:

— Não tema meu velho! Estarei junto a você passo a passo. Conte comigo! — podia se ver a sinceridade nos olhos de Pedro, ao ajeitar a gola da minha camisa.

Pedro, pagou a conta, e saiu vestido em seu terno azul-marinho em direção à porta. Eu fiquei um pouco mais, saboreando a notícia e a possibilidade de uma mudança em minha vida. Quem diria! Desde menino, eu, sem ter condições de fugir fisicamente do mundo em que vivia, metia a cara nos livros. Através deles, eu partia para terras distantes, onde tudo era novo e bom! Mesmo sem conhecer os autores, eu já os admirava, tamanho o poder de construir tanta beleza a partir do nada. E agora, eu estaria na outra ponta. Eu seria um criador de mundos, nos quais também outras pessoas, pudessem se refugiar.

Olhei para cima, o relógio é o assistente do diabo, resmunguei. Estava atrasado e não podia perder aquela aula. Ainda mais que estava prestes a perder tudo. É só não pagar esse mês, e adeus ao tão sonhado jornalismo. Por essa razão mesma, quero usufruir ao máximo tudo o que ainda me resta. Não sei por que insisto tanto nisso né? Há momentos em que me dá vontade de desistir de tudo, sair sem olhar pra trás. “Tu nunca será nada na vida mesmo. Imprestável é o que tu és” — como se minha mãe estivesse ali presente, com o dedo em riste.

Vou ao banheiro, o ar é gélido impregnado pelo cheiro de urina. Atrás do vaso, escorria água sem parar. A parede revestida de azulejos, outrora azuis, agora são amarelejos. Sorri de minha própria tirada! Saí a passos, quase batendo a cabeça no batente da porta. O trinco enferrujado. Passo ao longo de uma pilha de engradados mal arrumados. O cheiro de cerveja misturado à vodca, cachaça e outras porcarias, me dá náusea. Sem parar, cumprimenta o gerente e as garçonetes atrás do balcão. Já na rua, arremangando a camisa, encho-me de um sentimento de gratidão por Pedro Dantas.

Mal sei que os amigos nem sempre são tão amigos assim…

Capítulo VII – Noite de Amor

No campus da universidade, sigo apressado pela longa cobertura. De um lado, as salas, do outro, o gramado com bancos e pequenas árvores paralelas ao prédio. Um contraste vibrante com a rotina estudantil. O cheiro da grama cortada e o murmúrio distante de risadas e conversas animadas envolvem o ambiente. Dirijo-me à sala. Peço licença ao professor, e entro. Ao final da aula, na escadaria que dava para a rua, uma surpresa: Jasmine esperava- me, ansiosa e perfumada! Perfumada até demais para mim, o aroma adocicado envolvia-me. Ela estava exultante, e não era para menos, mal se formara e já estava empregada. Era uma garota de muita sorte!

— Oi meu amor, estava com saudade? — Indagou ela, pendurando-se ao meu pescoço. O vestido subindo até o alto das pernas bem torneadas, destacadas por meias pretas transparentes.

— Oi minha loura linda de olhos azuis! Claro né? Com muita saudade — eu disse, virando pro lado entre espirros.

— Viu? Quero que venha até minha casa – e à ponta dos pés, me beija. Um brilho de malícia no olhar.

— Então vamos, senão perderemos o ônibus – eu disse apontando para o relógio no pulso dela, ao descer os degraus com meus passos longos.

— Surpresa! — ela gritou efusiante, balançando as chaves e apontando para o outro lado da rua. Um automóvel Gol azul metálico brilhava sob a luz da lua.

— Mas é novinho! — eu disse, com os olhos arregalados e um sorriso tão amplo quanto meu rosto — de quem é?

— É nosso meu amor! Tirei da concessionária hoje pela manhã, viu? O que acha? — Jasmine agia como uma criança ao entrar num parque encantado.

Atravessei a rua, abri a porta, inalei o cheirinho de carro novo. No banco traseiro, o plástico não havia sido tirado. Fiz uma mesura para que Jasmine entrasse, fechei a porta devagar.

— Deve ter custado uma grana né? —Comentei, feliz, porém intrigado. Olhei o painel iluminado de verde e vermelho.

— Sim, um pouco alto o preço… — Jasmine, mordendo o lábio inferior, deu uma resposta permeada de silêncios, quase num duplo sentido — mas não se preocupe, tenho trinta e seis meses para pagar — riu ao dar um tapinha na minha perna! Se Lázaro soubesse o quanto tudo isso tem me custado...

Sorri, sem poder evitar uma certa estranheza: Incrível, ainda ontem estivemos juntos e ela nada me disse a respeito de comprar um carro! Deixei pra lá, o momento era de comemoração!

Durante o trajeto, falamos sobre o meu curso e o seu trabalho no Jornal Hora Zero, o HZ, como era conhecido. O som do motor do carro se mistura ao ritmo acelerado de nossas vozes. Eu intercalava a fala com espirros intermitentes. Baixei o vidro.

— Você está se sentindo bem? Está resfriado? Viu? Fecha a janela — Diz ela, com um olhar preocupado. Um olho em mim, outro no trânsito da cidade.

— Estou bem, é só uma alergia. Nada com que se preocupar — falei recostado no assento. Virei os olhos em direção a ela.

— Alergia a Jasmine? — – brincou, ao ligar a seta para entrar na garagem do prédio, onde passou a morar há uns meses

— Não, claro que não, meu amor! Mas ao perfume da Jasmine, sim — soltei uma risada frouxa, colocando a mão esquerda em sua coxa.

No apartamento, Jasmine corre para o banho e livra-se do excesso de perfume. Retorna em um vestido de lingerie vermelho. Os cabelos úmidos.

— Não tenho saco pra secador de cabelos, viu? Ainda mais com você aqui, todinho pra mim — disse, enrolando uma toalha branca na cabeça.

O calor do momento, misturado ao cheiro do sabonete, tornava-me o ambiente ainda mais familiar. Engraçado… um perfume, uma comida, uma música… tudo nos remete a passados tão distantes … Como se fosse um recorte… uma imagem do passado sobreposta no presente… uma colagem… uma montagem.

Ela fala do quanto estava adorando o seu trabalho, os colegas e a rotina de um jornal. Eu, feliz por ela, a ouço com atenção, fazendo-lhe perguntas. Ela pergunta do meu trabalho e meus estudos, um largo sorriso se forma no meu rosto.

— O Caminho de Volta será reescrito e publicado! — falo de chofre, abrindo os braços para recebê-la junto a mim.

Jasmine me abraça, mil expectativas no olhar. Ela parece mais radiante e feliz do que eu mesmo. Fala do orgulho de ver meu nome saltando das vitrinas, nas livrarias. Planeja a sessão de autógrafos, ela mesma faria a cobertura. Ansiosa para que eu seja reconhecido.

— Calma, minha linda! O livro ainda nem foi escrito – ri, e a fiz sentar em minhas pernas — saiba que há muito trabalho pela frente — o sorriso se apagando, o olhar fixo no ventre de Jasmine.

— Você não parece estar muito animado. Eu, no seu lugar, estaria gritando pelas ruas! Não ficou feliz? É mais do que o seu trabalho, é a sua cria vindo à luz! — comemora ela, abrindo uma garrafa de vinho.

— Sim, claro que estou feliz. É que uma notícia boa é sempre ofuscada por outra ruim, né? – Passei a mão na testa. A orelha junto aos seios de Jasmine.

— Pode parar. Não se lamente assim, viu? Sua boa sorte só será ofuscada se você o permitir. Os acontecimentos são distintos entre si. Primeiro comemoremos o que deu certo, depois resolveremos o que ainda não deu – disse ela, erguendo meu queixo, fitando-me nos olhos quase cerrados – e o que é que está te deixando tão preocupado?

— Meu curso na faculdade. Pelo visto, estou condenado a parar de vez com tudo. Sei que posso trancar por uns tempos, mas se o fizer com certeza não o retomarei. Tenho apenas uma semana para pagar a mensalidade, e o pior, houve outro aumento. Você bem sabe que a nossa educação, é regida por leis puramente mercadológicas, como um produto qualquer, né? Franzi a testa e apertei os lábios, visivelmente frustrado.

— Calma viu? Você não vai perder tudo agora! Não, não vai! Algo de bom irá acontecer, apenas confie. Venha cá – disse ela, com as mãos no meu rosto, beijando-me.

— Algo de bom acontecer? — tirei-a do colo levantando-me da poltrona, reviro os cabelos — você ainda crê que “algo de bom” poderá acontecer comigo?

Acuado, os dedos à testa, olho para o vazio. As memórias flutuando como imagens distantes. “E agora, o que vai ser de ti, hein? Você não serve pra nada! Nunca será nada na vida! É um imprestável, guri! Vem aqui, quero te bater, guri de merda!” As palavras da mãe ma minha mente. Uma tempestade de revolta. O sonho da fuga parecia distante. Encostei-me à parede.

— Quando entrei nessa porra de universidade, aos vinte e dois anos, muita gente já se formava. Quatro anos depois e ainda estou tentando concluir o segundo período. Com um toque de sorte, talvez eu me gradue aos trinta anos. Mas nem esse pouco de sorte eu tenho. É certo que dessa vez, terei de largar tudo. E o pior, será para nunca mais voltar — caminho até a janela. Inalo do frescor da noite. Ao longe, um grilo a cricrilar — e não é por falta de esforço. Deus sabe, o quanto tenho percorrido lugares, a mendigar trabalho. Uma merda qualquer, de onde eu possa manter meus estudos. Mas as respostas são sempre as mesmas: “Quando você se formar o contrataremos”. “Não posso contratá-lo para este serviço tão simples, você é universitário…” No estágio em que estou, não sou bom o suficiente para um trabalho superior, ao mesmo tempo em que sou bom demais para um inferior. A verdade é que não sou boi nem vaca, você pode me entender?

Eva Jasmine da Silva, eu podia ver, sofria por mim, em silêncio. Ela podia entender a magnitude da minha dor. Aquela gota de lágrima retida na pálpebra inferior dos olhos, a denunciava. Ela morde o lábio inferior olhando o tapete marrom, correndo os pés na sua maciez. Ela volta a olhar-me.

— Lázaro, tudo é difícil, eu sei, por experiência própria. Mas essa mesma experiência me diz também, que pra tudo dá-se um jeito. Aprendi isso com meu pai. “Fique tranquila minha filha”, dizia papai antes de partir, “você vai terminar seus estudos. O pai ainda vai ver você se formando. A sua festa de formatura será maravilhosa! Você será repórter num grande jornal. Custe o que custar, você vai, viu?” E papai, por último, vendeu nossa única casa, para que eu continuasse a estudar. E foi passar seus últimos dias, debilitado, na casa de minha irmã. Ele não sobreviveu para ver sua filha formada. — disse ela, os olhos parados, como se olhasse através de mim.

Permaneço calado, da janela, fito as estrelas, divagando: dizem que tudo o que acontece na Terra já há muito estava escrito nas estrelas. Em qual delas posso ler a minha história?

— Lázaro, meu bem! — Jasmine desenrola a toalha e solta oscabelos dourados — Ainda falta uma semana, tempo suficiente para acharmos uma saída. E viu? Mesmo que não acredite em mais nada, apenas confie em mim.

— Oh! Minha linda! Sei que poderei sempre contar com você! — Retornei para os seus braços, seco as lágrimas com as costas da mão.

Silenciamos em um longo beijo. Um abraço frenético e a urgência de nos amarmos.

Jasmine mora num apartamento simples e aconchegante, decorado com folhagens e vasos floridos. O gosto pela decoração floral, segundo ela, vinha de sua mãe e, depois, da irmã que jamais descuidava de enfeitar a casa, com flores cultivadas no bem cuidado jardim. Ela repete sempre: “As flores perfumam e dão vida à casa!” Lavanda de rosas no ar, um abraço na alma. A música romântica vinha suavemente de um pequeno aparelho, sobre um aparador rústico.

Jasmine serve duas taças de vinho, coroando o clima de romance. Conduz-me, pela mão, até o quarto. Uma cama, de lençóis e travesseiros azuis arrumados, ao centro. Um grande guarda-roupas branco, ocultando a parede, à direita da cama. À esquerda, um janelão, as cortinas acinzentadas alcançam o assoalho parquet. Aos pés, uma cômoda e uma penteadeira com gavetas. Sou empurrado diante de um grande espelho na cabeceira. Seus lânguidos movimentos sincronizados à música. Compassadamente vai desvelando, ao meu olhar , o corpo de formas arredondadas e generosas. Sobe em pé na cama, com as pernas afastadas, mostra-me a vulva úmida. Dançando em meus olhos fixos, a boca aberta, indecisa.

Silenciosa a noite deita. A lua cúmplice abre-se de orvalho. Extasiada, Jasmine delira sob o toque morno, meus lábios úmidos em suas costas. Entro no fundo de sua espera. Aninhado no conforto de seu corpo, novamente em casa. No útero que abraça, tão materno. E as velhas imagens perfuram minhas sensações. “Tu não vale nada, só quer saber de putaria e essas vagabundas… só servem pra fazer porcaria. Essas nojentas…” Os cabelos louros espalhados contra a fronha, exalam seu perfume. Cavidade e reentrância aos dedos diviso. A silhueta à sombra curva. Inebriado no aroma do prazer estalo os sentidos. A música ao fundo imprime memórias. E às costas, como se tatuado na pele, desde o nascimento, um coração.

Acolhidos na madrugada de silêncios… As entranhas do sonho perpassam o sono…

“… Vejo-me ali… menina pequena… cabelos de milho… olhos de mar. À beira de um rio estreito… acidentado. Cheiro de mato… canto de pássaros. Águas escorrem… velozes… redemoinhos. O som… uma sinfonia desconhecida… acalenta meus ouvidos. Eu dança… meu corpo gira… baila… vibra. Na outra margem… outra menina… pequena… cabelos de milho… olhos de mar… sou eu. No pulso… a pulseirinha igual. Caminhamos para o encontro… os braços abertos… caminhamos para as margens… Mas o rio se alarga, se alarga… A distância aumenta… aumenta … estou longe… a menina… desaparece.”

Jasmine, desperta maravilhada e assustada! Abraçada ao meu corpo quente, conta-me o sonho em todos os seus detalhes, procurando significado.

E tudo isso terá um significado mais à frente…

Capítulo VIII – O Livro

Para escrever o meu primeiro livro, foi uma batalha silenciosa, desafiadora. O dia começava com o som irritante do despertador. O toque metálico, cortando a manhã como uma lâmina fina. Era, um lembrete cruel de que o tempo, não pára, mesmo que minha inspiração muitas vezes o fizesse. O tic-tac tic-tac tic-tac, bate na minha cabeça, e a cada batida, a cobrança de uma dívida de criatividade.

Levantei-me lentamente, o corpo pesado. Os olhos teimando em se fechar. Estiquei o corpo, as juntas estalando. Um café forte, e a mente já repleta de pensamentos soltos, como papéis espalhados ao vento. A mesa de madeira abarrotada de folhas, cadernos, livros, clipes e canetas. Eu sabia, precisava mergulhar, mas hesitava. A mente, entre desculpas, acabava me levando para outros pensares e afazeres.

A faculdade… O jornalismo… Tudo não passou de um sonho. Mas se fora um sonho, então muitos deliraram comigo. Os professores, os amigos, a Jasmine, tanta gente acreditou comigo! Mas a verdade, é que o meu destino foi maior, e engoliu a todos, a começar por mim. Está tudo acabado. Agora, o jeito é escrever, cruzar os dedos para que isso dê certo.

Mas as memórias me feriam, me espezinhavam. Todo o meu passado, gravado a canivete, como corações numa árvore, mas em minha a carne, a lâmina quente.

Após a morte de minha mãe, em uma fase de solidão e desespero, acabei me envolvendo com as drogas. Fui preso e condenado a um ano numa clínica de recuperação. Esse período foi crucial em minha a vida, pois tive a oportunidade de refletir sobre meus erros e encontrar um novo propósito. O quarto na clínica era simples, mas funcional. Dividíamos o espaço em quatro rapazes. Dois beliches de madeira junto às paredes laterais de alvenaria. Minha cama, ficava ao fundo, logo abaixo de uma janela, sempre aberta durante o dia. Em frente à porta, um guarda-roupas de três portas guardava os nossos poucos pertences. O banheiro ficava no corredor, com mais dois no andar de baixo, compartilhados por outros pacientes. Lá fora, muitas árvores e entre elas, muitas frutiferas. Tínhamos galinhas, patos, porcos e vacas. Próximo à casa ficava a horta. Tudo cuidado pelos internos a título de laborterapia. Havia também o mascote da casa, um pastor alemão que se chamava Napoleão.

À noite, no escuro de minha cama, eu deixava a mente vagar. As conversas periódicas com a doutora Martina vinham à tona, fragmentos de diálogos se misturando às lembranças. Na solidão daquele quarto, as imagens corriam soltas, desordenadas, preenchendo o vazio do sono. “… Tu nunca será nada. Tu não presta, não vale nada” — dizia minha mãe de avental e lenço floral na cabeça. Uma sombra branca contradiz: “Não dê atenção meu amo. Isto não tem que ser real. Ultrapasse a fronteira…” Eu, cansado, o suor escorrendo até os olhos ardentes. Minhas pernas insistiam em correr e não saíam do lugar… Paredão… Revólver… O dedo da mão no gatilho. Projétil atravessando a camisa e furando o peito. Cheiro de carne queimada. Um zunido estilhaça o tímpano direito. Aaaiiiiiiiiii aaaiiiiiiiiii. Eu grito. Surdo grito. A mão sobre o peito banhado de suor. Uma agulhada prolonga-se na carne… Ali, acariciando meus cabelos volumosos, doutora Martina despindo-se…

Acordo, os olhos perdidos no teto, a respiração forçada, a camiseta banhada de suor. Encolhido em posição fetal. A águia tatuada nas costas. Tão indefeso quanto o menino que sempre fui… Eu, oscilava entre a vigília e o sono, sem distinguir se o que vivia era uma lembrança distante ou um sonho que se desenrolava nas profundezas da madrugada. Vinha-me a sensação de gratidão, por ter conhecido Yosef, preenchendo-me o peito. Sem aquele encontro, ele estaria morto, e eu condenado por tráfico, queimando por anos naquele inferno. Eu sabia que muitos ali, por crimes menores, penavam sem qualquer vislumbre de esperança. “A justiça não existe por si só, precisa ser provocada; movida por mãos capazes e, sem dinheiro, ela simplesmente não se faria.” E foi Yosef que possibilitou a minha digna defesa. Quando saí da clínica, decidi retomar meus estudos, até mesmo por pressão da justiça, e finalmente, consegui ingressar na faculdade de jornalismo.”

Tudo vinha tão nitidamente à minha consciência, tudo era tão claro como se fosse hoje. Mas da memória, à mão na caneta, ia uma grande distância. Uma trava, uma amarra, um grilhão. Eu estava preso dentro de da própria mente. E como sair de lá? Como sair de aqui, dentro de mim?

“Eu, inaugurei o ano em que a ONU estabeleceu o Dia Internacional contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas, na cadeia”. Lembrei da noite em que fui autuado: Eu caminhava pela Terceira Avenida, fungando com o dedo pressionado contra uma das narinas. Não percebi o aproximar silencioso da viatura se iluminando ao meu lado. Dois homens dela desceram e me abordaram junto ao muro. Eram dois policiais civis dando-me voz de prisão, acharam em meu bolso um embrulho com algumas gramas.

Eu rabiscava com pressa, riscando frases que uma hora antes valeram, mas agora já não fazem o menor sentido. A frustração vinha em ondas. Sentia-me lutando contra algo invisível, escapando pelas frestas da minha mente. Era tentar prender o ar nas mãos.

E quando parava pra pensar, era sequestrado por vãs memórias.

“Vai, escreve!” — A voz dela soava agora como uma martelada, sem espaço para amenidades. — “Ou vai apanhar de novo. Você não consegue escrever uma maldita carta? Para quê estudas Lázaro?”

O pequeno quarto, abafado e pouco iluminado. As paredes, de pintura gasta e suja, cada vez mais próximas, achatavam-me os ossos. O ventilador do teto girava lento, arrastando o ar quente, pesado. A janela aberta, nenhuma brisa parecia entrar. A sensação de isolamento. As memórias queimando as horas.

Comecei fumando uns baseados com a rapaziada, até aí paz e amor! Então provei a cocaína… Me apaixonei logo de cara pelo pó branco, mas era caro. No início era de graça, era só festa!…

Respirei fundo, lembrando daqueles tempos difíceis.

Mas a festa acabou. Quando percebi, estava viciado e precisava de mais. Comecei a gastar todo o dinheiro que tinha. Depois, comecei a vender para sustentar o vício. Suspirou a plenos pulmões.

Lá fora, os filhos da cidade e seus ruídos ininteligíveis – buzinas, vozes distantes, rangidos de portas de metal se abrindo. Eu fitava o papel risonho à minha frente, mostrava-me a mesma linha que reescrevera pela quinta vez naquela manhã.

O vazio do papel era tanto uma promessa quanto uma ameaça. Cada palavra parecia um fardo. As frases saíam tortas, birrentas. Minha mente estava presa, entre as lembranças que tentava processar, e a história que desejava contar. Não deve ser nada fácil despir-se diante de uma multidão de estranhos. E, de repente, tudo parava. E a cena vinha à mente outra vez

A maconha úmida, pegajosa amassada, entre o dedão e o indicador, na palma da mão. As mãos a enrolam na seda. Passa a língua, ativa a goma, aperta, fecha. A boca, o isqueiro, puxa, segura. “cóf cóf cóf essa é da boa!” A voz para dentro, “você viu o que é técnica? Ninguém fecha melhor meu brother!” A saliva no dedo, no papel, pra queimar devagar. Olhos avermelhados, o sorriso bobo. Um desaperto no estômago, uma parada no tempo. Passa pra ele, pro outro, e… Guarda a bagana, sai do terreno baldio para a rua. E o mundo? É só paz e amor!

Numa repentina lufada de vento o cenário muda…

A casa, a sala, a mesa nua. Um prato aquecido à chama. Abre a bucha, tira com o Cartão da Caixa. Põe no prato, amassa, tritura. O cartão, as carreiras, os riscos.
A cédula do Conselho Monetário faz o canudo. Inala, puxa tudo pro nariz. Ergue a cabeça, puxa, limpa. O cheiro de remédio. O gosto ácido. A boca dormente. Um choque nas ideias zuummm… Olhos estalados, pupilas dilatadas. O outro, no outro risco, o outro… A fala fácil. Cabeça e fogos de artifício. A sensação, o poder, as visões. Tudo flui. Tesão de vida, tesão de sexo… E, de tudo isso, o pior é gostar. E, Eu gostei.

Pedro Dantas estava sempre presente em meus pensamentos, como uma voz silenciosa na minha cabeça, lembrando-me das expectativas.

“Lázaro, você está se enrolando nesse parágrafo. As pessoas não querem uma aula, querem emoção. Sentimento!” Eu me lembrava das palavras de Pedro, ditas em um tom que soava como uma mistura de encorajamento e cobrança.

Eu esbugalhava os olhos, uma pressão acumulada. Eu sei, Pedro. Mas às vezes… às vezes, eu não sei se tenho tudo isso dentro de mim. As palavras… Elas me escapam.

Mas Pedro nunca tornou as coisas mais simples. “Isso é besteira! Você sempre teve isso aí dentro. Desde a primeira vez que li seus rascunhos, eu descobri. É só parar de se cobrar tanto. Deixa fluir.”

Essas conversas, embora breves, eclodiam em minha mente, um alarme que nunca se calava. Eu sabia que precisava continuar, antes que o cansaço o consumisse. Mesmo quando o barulho do mundo, parecia muito mais alto do que a minha voz interna. “É só isso que você consegue?” A voz da mãe veio cheia de desprezo. “Inútil.” Esfrega o rosto, cansado, os olhos ardendo de tantas noites mal dormidas. Uma ansiedade constante, uma sensação de fracasso iminente que eu não poderia sacudir.

A mão tremia sobre o papel, como se a caneta pesasse uma tonelada. O suor escorria pela testa. A frustração fervia em minhas veias. Cada frase era uma batalha. Às vezes, me permitia olhar para o céu, através da pequena janela, sentia o peso da imensidão lá fora. Era como se o mundo estivesse seguindo sem mim, preso no mesmo ponto, paralisado. Então vinha-me à memória a entrevista com… aquela pessoa que, com o passar do tempo, me havia ajudado a mudar tudo…

A sala era pequena e sem janelas, com paredes de um cinza opaco que absorvia qualquer resquício de luz natural. O único móvel era uma mesa de metal, onde estavam uma cadeira para a doutora e outra para mim, ambas presas ao chão. O ar era pesado, carregado pelo cheiro do sabão da limpeza.

“Bom dia, Lázaro!” A voz da Dra. Martina ecoou no ambiente silencioso, cortando o pesado silêncio. Seus olhos, castanhos e tranquilizadores, tentavam transmitir uma sensação de calma. Eu, sentado na cadeira de metal, sentia a rigidez das algemas em meus pulsos marcados. A cada movimento mais um aperto… outro aperto… Aqueles grilhões entravam-me na carne, no espírito… eu à sua imagem…
“Meu nome é Miriam Martina Torquatto, mas pode me chamar de doutora Martina. Seu nome completo é Lázaro Luiz Conde. Luiz com “Z”, é assim?” Ela ergueu a cabeça, procurando meus olhos, eu evitava seu olhar, fixando-o em um ponto qualquer na parede.

Bom dia, Dra. Martina. Estou um pouco nervoso, para ser sincero. Essa situação toda me deixa inquieto né… ” Minha voz era baixa, rouca, como se eu estivesse engasgado.

“Olha, é compreensível? Vamos conversar sobre isso.” Falou anotando em uma prancheta. A caneta deslizava pelo papel, o som rabiscando no silêncio da sala. “O que você acha que é mais difícil para você neste momento?”

Engoli em seco, meus olhos percorrendo a sala sem foco. “Eu acho que é o medo do que vem a seguir. Não sei como o juiz vai decidir. Se ele me considerar um traficante, minha vida pode acabar, né?” Murmurei, a voz quase inaudível. Meus ombros se curvaram, como se eu estivesse tentando me tornar menor.

“Eu entendo. Mas você sabe que o objetivo da nossa conversa é ajudar a esclarecer sua situação, certo? Você está disposto a compartilhar sua história?” Disse ela, ao segurar a pedra verde do colar, inclinando-se para frente, seus olhos fixos nos meus.

Hesitei por um momento, coçando a testa. Finalmente, assenti com a cabeça, um gesto quase imperceptível.

“Então partiremos do começo. Como você se sentia quando era criança?”

Fechei os olhos, tentando afastar as lembranças dolorosas. A imagem de minha mãe gritando saltava em meus ouvidos, e a sensação da vara de marmelo em minhas costas, a exposição pública, os castigos, me fazia estremecer. O choro ardia em meus olhos, mas o segurei com força, determinado a não mostrar fraqueza. Abri os olhos e encarei a Dra. Martina, limpei as lágrimas que escaparam. “Eu… eu a ajudava vendendo salgadinhos e engraxando sapatos, né? Mas nada parecia satisfatório. Ela só me batia e xingava” murmurei, a voz falhando.

A Dra. Martina assentia com a cabeça, seus olhos cheios de compaixão. “Olha, Isso deve ter sido muito difícil para você.” Ela fez uma pausa, dando tempo para que me recuperasse. Ela inclinou-se para frente, seus olhos fixos nos meus. “Me conte mais sobre o que aconteceu depois da morte de sua mãe. Como você começou a usar drogas?”

Suspirei, passar as mão pela cabeça raspada, a dor do metal contra a testa, a aspereza do crânio. A sala pequena e claustrofóbica parecia se estreitar ainda mais. “Depois que ela se foi, me senti completamente perdido. A casa estava vazia, silenciosa. Era como se uma parte de mim tivesse morrido junto com ela.” Eu fiz uma pausa, os olhos marejados. “Um dia, um amigo me ofereceu um baseado, depois… uma carreira de cocaína… No começo, foi só por curiosidade, mas logo me dei conta de que aquilo me proporcionava uma fuga da realidade, um alívio para toda a dor que eu sentia, né?”

Martina anotou em sua prancheta, seus olhos transmitindo empatia. “E com o tempo, essa fuga se tornou uma necessidade?”

Assenti com a cabeça, um gesto lento e pesado. “Sim, cada vez mais. As drogas se tornaram minha única companhia. Esqueci da minha própria vida. Só pensava em como conseguir a próxima dose.”

A psicóloga me observou atentamente, notando a tristeza em meus olhos. “E… como você se envolveu com o tráfico? Foi uma consequência direta do seu vício?”

Guardei um longo silêncio, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. “No começo, eu só usava. Mas para conseguir dinheiro para comprar as drogas, comecei a revender para os meus amigos. Foi assim que fui me envolvendo cada vez mais nesse mundo. Até que um dia, fui pego, né? “

A Dra. Martina fez uma pausa, dando tempo para que Lázaro se recompusesse. “Entendo… E durante o tempo que você esteve envolvido com o tráfico, como se sentia?”

Apertei os olhos, como se estivesse revivendo aquelas lembranças. “Acordei para uma realidade que eu nunca imaginei. A violência, a traição, a constante sensação de estar sendo perseguido… Era como se eu estivesse vivendo um pesadelo.”

Voltando às conversas com Pedro, meu mentor…

“Você precisa de uma pausa, meu velho”, dizia ele, durante os encontros no café que costumavam ter. “Tem que sair desse quarto sufocante e ver o mundo lá fora, Lázaro.”

“Eu vejo o mundo através dessas palavras, né?” Eu respondia, com um sorriso cansado.

“Mas as palavras não te mostram o mundo se você não viver nele.”

A tensão entre nós, sempre terminava com uma risada contida. Eu sabia que Pedro estava certo. O peso da escrita, era mais profundo que o esforço físico. A luta estava nas expectativas, o peso que eu mesmo carregava. Como se cada palavra, tivesse que ser perfeita. Como se cada página pudesse ser a última oportunidade de provar meu valor.

Ainda assim, eu insistia. A cada rabisco, a cada palavra que fluía pela caneta, algo dentro de mim renascia.

O celular vibrou em cima da mesa. Pedro de novo. Olhei para o número piscando na tela, hesitei com a mão em meio caminho, finalmente atendi.

— Lázaro meu velho! Finalmente! — Pedro começou, sua voz vibrante cortando o silêncio. — Como está indo o livro? Morrendo de curiosidade pra ver o que você escreveu.

Fiquei em silêncio por um momento, ouvindo o som distante de uma motocicleta passando pela rua. Eu sabia o que Pedro aguardava, mas não tinha nada pronto. Apenas rabiscos, ideias desconexas e capítulos que não faziam sentido.

— Tá complicado, Pedro — respondi, a voz baixa, quase um sussurro. — Parece que… parece que nada sai direito.

— Complicado? — Pedro soltou uma risada. — Isso é normal, velho! Todo mundo passa por isso. Mas a gente precisa avançar. Me mande o que tem, eu posso te ajudar a ajustar.

Suspirei, rocei os dedos na testa. Passei a mão pelos cabelos, desordenados como meus pensamentos.

— Não é isso… — comecei, mas fui interrompido.

— O que é então? Bloqueio criativo? — Pedro falou com leve preocupação na voz. — Isso passa, você sabe.

Em silêncio, ouvia Pedro dando ordens, talvez à secretária. Eu torcia que o assunto entre eles se prolongasse. Ganharia tempo, talvez encontrasse o que dizer… mas Pedro retornou.

— Não é só bloqueio, né? — Respirei fundo, o calor no rosto, um aperto no peito. — É como se… se a mão tivesse autonomia. Penso numa coisa mas a mente vai pra outra. Toda vez que começo a escrever… as palavras fogem. Estou cavando num chão seco e pedregoso — gaguejei.

Pedro ficou em silêncio por um momento… o barulho de uma página virando do outro lado da linha preenchia o espaço.

— Eu entendo meu velho — Pedro disse finalmente, mais sério. — Mas você tem uma história, cara. A história está dentro de você. Às vezes, a gente precisa cavar mais fundo, enfrentar o que está nos bloqueando. Me fala, o que está te impedindo?

Olhei para as folhas esparramadas na mesa, palavras rabiscadas e riscadas. A mão sobre o estômago. O passado parecia pesar sobre cada palavra que eu tentava escrever. As lembranças da infância, o abandono do pai, o desprezo da mãe. Há um tempo, eu havia transformado tudo isso em combustível para a escrita, mas agora… agora… parecia que esse mesmo fogo me consumia.

— Pedro, não sei se consigo… — disse, os olhos fixos na mesa — todo o peso do passado me puxa para trás — levei os cabelos para trás, as mãos úmidas. Fora do ar enquanto falava. E a caneta desenhava irreconhecíveis pequenos nadas.

— Meu velho, todo escritor carrega suas feridas nas palavras — Pedro falou devagar, como se escolhesse com cuidado cada frase. — Não tente se afastar delas, use-as. Coloque nas páginas. Escrever é sangrar, Lázaro. Mas você sabe disso.

Fechei os olhos , tentando me concentrar nas palavras de Pedro, mas tudo o que via eram flashes de meu pai, deixando a casa, o olhar de desdém da mãe, o som seco da porta batendo, o riso dos moleques… os fregueses que comiam sem pagar…

— Às vezes eu sinto que não vale a pena, né? — Sussurrei, coçando a testa, a voz falhando. — Que talvez eu não seja capaz de escrever isso.
Pedro riu. Falou em seguida, dessa vez com um toque de firmeza.

— Besteira. Você já escreveu, e escreveu muito bem, porque tem algo a dizer. Você tem uma voz, meu velho. Não importa se você não acredita agora, porque eu acredito.

Abri os olhos, olhando para o vazio. Pedro sempre teve esse jeito de falar, como se tudo fosse fácil. Mas Pedro não conhecia o peso das palavras duras que eu carregava. Aquelas frases amargas que ainda ecoavam na minha mente: “Tu não vale nada. Nunca vai ser alguém.” Senti o gosto amargo daquelas memórias, como fel na boca.

— Tá, Pedro… eu vou tentar — coço a barba, respondo num suspiro. Sem acreditar muito que digo.

— Não tenta não. Apenas faça! Eu estou com você, e quero ver pelo menos umas dez páginas até o final da semana, entendeu?

Pedro desligou antes que eu pudesse responder, deixando-me sozinho na sala abafada novamente.

Olhei ao redor, para o pequeno cômodo, que já parecia mais uma prisão do que um lar. A mesa sem espaço. Roupas nas cadeiras.Tudo estava desmoronando. E o que Pedro não sabia, era que eu estava a um fio de desistir. A caneca de café frio deslizava de meus dedos. A caneta na boca… as palavras não vinham.

Forcei-me a sentar na escrita, os olhos fixos à folha. O azul tingindo o papel. O silêncio esmagador. Cada risco era um desafio ao desespero.

Dias mais tarde, no escritório de Pedro, a tensão tomava corpo. Ele olhou para as páginas que entreguei, com uma expressão que oscilava entre curiosidade e preocupação. O cheiro de café fresco permeava o ambiente, misturado ao som distante de uma música clássica que Pedro sempre colocava ao fundo.

— Meu velho, tá bom… mas não é você — Pedro disse, folheando os papéis, os dedos tamborilando na mesa de vidro. — Parece que você está se escondendo atrás das palavras, com medo de mostrar quem você é.

Desviei o olhar para a janela do escritório. Observando a cidade lá fora, os prédios imensos e as pessoas correndo de um lado para o outro. Eu não sabia o que responder, Pedro estava certo. Mas como eu poderia escrever sobre tudo o que realmente me assombrava?

Pedro olhou para mim, estalando os dedos e inclinando-se para frente.

— Você me disse uma vez que queria que seus livros fossem verdadeiros, que tocassem as pessoas. Então pára de fugir do que dói, Lázaro. Escreve sobre isso. Escreve sobre o peso do abandono, da exclusão, da dor. Isso é o que vai fazer seu livro ser grande.

Senti um nó na garganta, as palavras de Pedro ressoando profundamente. Era isso. Eu estava tentando evitar as feridas, quando na verdade, elas eram a chave para a minha história.

E Pedro continua, sob a autoridade de um editor e a compreensão de um amigo:

— Vou te dar um conselho meu velho. Da próxima vez, sente-se pra escrever e feche os olhos. Respire fundo. E deixa as lembranças virem. Não tente controlá-las. Deixa a dor te guiar.

O ar parecia mais leve naquele instante, como se algo finalmente se encaixasse dentro de mim. Movi devagar a cabeça. O peso daquelas palavras, se misturava à certeza de ter alguém que acreditava em mim.

— Valeu, Pedro… vou tentar de novo.
— Nada de tentar. Faça.

Despedi-me, a cabeça cheia de ideias e de medo, mas pela primeira vez em muito tempo, senti uma faísca. E era tudo o que precisava.

À noite, o cansaço me consumia, mas a luta continuava. Sentei-me, a lâmpada de mesa lançava sombras nas paredes. O barulho de carros distantes, de passos no corredor, faziam companhia. A solidão antes pesada, agora me libertava. Olhei para os cadernos com anotações, rascunhos que não faziam sentido. Passava os dedos pelas páginas rabiscadas… lembra-me das noites em que, exausto, rabiscava qualquer pensamento que surgisse, na esperança de transformá-lo em algo grande.

Foram esses pequenos momentos que me mantiveram firme. Às vezes, uma frase perfeita aparecia do nada, brilhando na escuridão como um farol, em minhas ideias confusas. Essas pequenas vitórias, me impulsionaram a seguir, mesmo quando tudo parecia perdido. Mas a luta era constante, implacável. A cada avanço, uma nova barreira cirúrgica. Cada parágrafo, era extraído como parte de minha alma, uma parte que eu não tinha certeza se queria entregar. Quando eu finalmente consegui escrever por algumas horas seguidas, o corpo começou a reclamar. O pescoço doía, os olhos ardiam, as mãos estavam rígidas de tanto escrever. Mas havia uma força por dentro, que me impedia de parar. Eu sabia que esse livro seria a minha redenção. Era também, uma maneira de provar para eu mesmo, que não era mais o garoto fracassado, que minha mãe tanto dizia.

Nos momentos mais difíceis, lembrava da minha infância, de quando, escondido no quarto, lia livros com as páginas desgastadas. Lembrava-me daquelas palavras, que me fizeram sonhar em ser mais do que eu realmente era.

A luta diária era uma dança entre a criação e a dor, entre a persistência e o desespero. Mas, a cada palavra escrita, eu sentia que estava um passo mais perto do meu objetivo. Mesmo nos dias em que a página permanecia quase em branco, eu sabia que, ainda estava no páreo.

Enquanto você, leitor, toma conhecimento do passado de Lázaro, ele, no presente, debate-se com seus medos e fantasmas, durante o coma, há dias…

“… ÁGUA … escuro… afogando… quem sou? onde estou? bolhas… SILÊNCIO … vazio… NADA… mais… ROSTO … sorrindo… olhos… tristes… voz… DISTANTE … gritos… correndo… perseguindo… Cores… VIBRANTES … girando… infinito… ESTRELAS … céu… voando… CAINDO … nada… tudo… Sozinho… ABANDONADO … medo… dor… TEMPO … parado… FUTURO … esperança… perdida… Correndo… perseguindo… SOMBRA … gritos… água… AFOGANDO … céu… vazio… nada… mais… QUEM … sou? ONDE … estou? TEMPO … parado… incerto… PRESO dentro de mim… SOCORROOOOO …

Capítulo IX – O Emprego

Eu, andava nervoso pra lá e pra cá, em meu quarto apertado. Os passos ecoavam no piso gasto. A cama desfeita, com seus lençóis espalhados, parecia ainda menor. Na pequena mesa do fogareiro, restavam alguns pães amanhecidos e umas latas de sardinha, exalando um cheiro azedo metálico. Duas cadeiras de palha, pareciam conversar entre si, sob o tom amarelado da lâmpada. Havia um cheiro de miséria e resignação no ar. A lixeira abarrotada de papéis amassados, partes mutiladas de uma história. O banheiro ficava no fim do corredor, mas o esgoto bem, esse passava sob o meu assoalho. O ar era impregnado. Abro a janela, o sol arde em meus olhos. A rua movimentada, uma cortina de poeira. Um grupo de rapazes de bermudão, e moças de saias curtas, passam em algazarra.

Não posso parar de estudar agora. Não posso fracassar no último passo. Se eu fraquejar agora como será? Respirei fundo, e o ar pesado trouxe-me de volta o sabor desagradável do fracasso. “Eu disse que você nunca seria nada.” A voz da mãe lhe perfurava a mente.

Fechei a janela com um estrondo, como se pudesse trancar as memórias do lado de fora. O calor da manhã, continuou invadindo o quarto abafado. A respiração mais pesada. Passei a mão no rosto, senti o suor frio. Três dias. Três malditos dias para pagar a universidade. E o livro… O livro vai bem, posso continuá-lo nas horas de folga. A faculdade é a prioridade agora.

Saí em busca de uma alternativa, sem saber ao menos, onde procurá-la. A pressão no peito era crescente, como se o ar estivesse mais denso ao meu redor. Resolvi procurar Matias Corpolli. Matias era o proprietário de uma boate cinco estrelas. A Paradisus era frequentada pela nata da sociedade. A boate, a bem da verdade, é só uma fachada, assim como muitos negócios por aí o são. Ela serve para atrair o pessoal do dinheiro para o primeiro contato. O filé mignon está por trás, aí entra o Matias. Ele é o cara que transita nos dois mundos, liga moças e rapazes pobres aos homens e mulheres ricos. Como ele mesmo diz, “quem ganha, primeiro dá; quem paga, primeiro recebe”. Esta é a filosofia de uma das mais rentáveis indústrias: o comércio do sexo. A boate, por fora, é a réplica de um castelo medieval, uma ilusão de grandeza que atraí olhares curiosos. Ao entrar, fui imediatamente envolvido pelo aroma do perfume e do álcool, misturados à música pulsante que reverberava nas paredes. Várias salas reservadas, um anfiteatro ao fundo, para shows. Uma piscina térmica enorme e um bar internacional, ajudavam a compor aquele cenário deslumbrante. Inúmeras obras de arte decoravam os cantos e as paredes. Em dois poços de luz envidraçados, na lateral do corredor de entrada, via-se um gramado onde dois casais de pavões coloridos se exibiam. As luxuosas suítes ao redor e os reservados à meia luz… Aquele era o paraíso dos desejos socialmente inconfessáveis.
Trabalhei ali, como porteiro, por quase dois anos. Um período marcado por olhares discretos e sussurros ao redor. Agora, as lembranças daquele período me sobrecarregavam, acentuando a urgência que me levara até ali. Eram treze horas, tudo aberto e iluminado. Vários funcionários se moviam apressados, na limpeza e na reposição de alimentos e bebidas. Todos os detalhes eram cuidados meticulosamente.

Mathias se encontrava em sua suíte, no andar de cima, refestelado na banheira. Os olhos voltados para o alto, acompanhavam os círculos de fumaça da cigarrilha preta. O copo de campari ao lado, testemunhava aquele corpo de cento e vinte quilos imerso entre espumas. A cabeça calva, os olhos castanho-claros, as orelhas salientes e os lábios finos falavam todos ao mesmo tempo. A voz afetada e pastosa.

— Eu sei que você precisa de dinheiro, meu lindo! Mas para você é fácil, está tudo na mão. Ou melhor, na mão e no corpo todo! – disse Matias me olhando de cima a baixo, com seu jeito insinuante e dissimulado de sempre.

— Você sabe que se eu voltar a trabalhar aqui, à noite, da mesma forma terei que parar de estudar, né? Os horários coincidem – eu disse abrindo os braços, as sobrancelhas curvadas. Um desespero na voz.

— Mas não estou falando em trabalhar aqui, meu lindo! Seria desperdício — disse ele fitando a braguilha da minha calça. — Você sabe o quanto encantou mulheres e bichas por aqui – falou se revolvendo na banheira a bebericar seu campari gelado.

— É só isso que você tem pra mim? Acreditei que você pudesse me arrumar um outro trabalho, ou talvez me emprestar um dinheiro. Assim que eu conseguir um trabalho, te pago, nem que seja aos poucos e… Me formando tudo mudará.

Matias me interrompeu, o tom de voz mudando para uma afirmação mais persuasiva.

— Antes de receber é preciso dar. Você me entende não é? E quanto ao empréstimo, um banco é bem mais indicado do que uma boate, concorda meu lindo? – disse, saindo da água, molhando o piso ao redor, a vestir o roupão. Matias acendeu outro cigarro em sua piteira longa, deu uma baforada e serviu-se de outra dose.

Depois de um longo silêncio, franzi a testa e numa careta, eu disse:

— Não, não me vejo fazendo isso — saindo a passos sonoros sem dizer palavras.

— Você acha que servirá melhor à sociedade dando más notícias a todos do que dando prazer a algumas pessoas? Já pensou no que esses figurões poderiam fazer para impulsionar sua carreira? Posso listar agora, de cabeça, cinco ou seis pessoas influentes que adorariam estar com você na cama, a esta hora! Se você não quer bicha, temos mulher também. — falava alto enquanto eu me afastava sem dar ouvidos.

Sem virar-me para ele, aceno e sigo caminhando para a saída. Frustrado, o semblante pesado. O corpo encurvado. Aperto os olhos ao sair para a claridade da tarde. A rua me recebeu com um silêncio ensurdecedor. Caminhei com passos pesados, a cabeça baixa e o coração dividido entre a necessidade e a moralidade.

Será isso o que me resta fazer? É fazer isso ou enterrar o sonho da formatura. Mas a formatura não é um sonho, é uma necessidade. Será que minha mãe esteve sempre certa, será? “Tu é e será sempre um imprestável. Tu jamais será alguém. Perdi minha vida criando um eterno zé ninguém.”

Sigo tropeçando na calçada, vez ou outra colidindo com pessoas e placas indicativas. Caminho alheio, envolvido num diálogo interno. Voltar após chegar até aqui não, né? Pensando bem, não há nada de mais nisso. Eu gosto de sexo. Ou será que não gosto? O problema é que gosto de escolher com quem o faço. Até agora só o fiz com quem me sentia bem. É… eu não conseguiria… Não consigo me imaginar fazendo sexo, assim no liga e desliga. Transar com alguém por dinheiro e vantagens… Isso não é fácil pra mim. Talvez isto seja um problema exclusivamente meu. Por que para mim, o prazer sempre gira em torno de uma história? Creio mesmo que a confusão é minha. Quando falo de sexo, refiro-me a amor. Mas muitos os distinguem muito bem: sexo é sexo, amor é amor. Mas se sexo nada tem a ver com amor, por que o sexo continua sendo uma das mais fortes expressões do amor? Se as coisas fossem tão distintas assim, não haveria sexo no amor, nem amor no sexo. Mas se pessoas que não se amam, têm o direito de usufruir do prazer que a atividade sexual lhes proporciona, por que então aquelas que se amam não o teria?
É, realmente, o sexo e o amor dividem-se — se é que cabe aí divisão — por uma linha muito, muito tênue. E por que eu não consigo ver o sexo como um meio para conseguir algum benefício? Talvez pela minha educação. Tanto na família quanto na sociedade essa atividade é uma ilha. Uma palavra cercada por tabus de todos os lados. Originalmente é prazer, mas institucionalmente é pecado e, em determinadas situações, é crime também. Mas em nome da manutenção da espécie e da indústria econômica, ele é então suportado. E por se tratar de uma potência, deve ser regulamentado, taxado e rotulado. Vivemos num mundo utilitarista, onde todo o prazer deve ser descartado e toda a nudez, castigada”. Bah! Aonde vou chegar com tudo isso? A questão é: fazer ou não fazer?”

Dois dias depois, eis que uma oportunidade detrabalho.

Saí de casa com o sol ainda baixo. Meu rosto refletindo uma mistura de determinação e cansaço. Olheiras e bolsas sob os olhos. Caminho pelas ruas da cidade, observando as pessoas apressadas, os carros que passavam, cada um seguindo seu próprio destino. As árvores nas calçadas, balançavam levemente com a brisa, oferecendo um breve intervalo ao calor que se instalava.
Ao me aproximar do posto de gasolina, notei na fachada bem cuidada, uma grande placa luminosa anunciando preços competitivos. As bombas de gasolina estavam alinhadas, com carros estacionados em fileiras, aguardando atendimento. Músicas vinham de dentro da loja de conveniência e misturavam-se com o barulho dos motores. A sinfonia urbana, uma mistura de roncos e acelerações, preenchia o ar. Os frentistas movimentavam-se de um lado para o outro, atendendo os clientes. Eu observava a dança frenética dos veículos, como se cada carro tivesse sua própria história e urgência. Atravessei a rua apressado e apresento-me no escritório.

— Então? Pronto para o batente? É só acompanhar o chefe de pista, ele te explica tudo – disse o homem, o Paulão do Posto. Um gordo, a cabeça enorme apoiada nos ombros. Era uma vaga temporária, para cobrir as férias de um dos frentistas.

Com um misto de expectativa e apreensão, vesti o macacão, calcei as luvas e as botinas. Senti a textura áspera do tecido contra a pele. Não era o que eu mais desejava, mas era a única alternativa que me restava. Olhei para os carros que chegavam, os motores rugindo como leões famintos. O cheiro de gasolina pairava no ar, penetrante e familiar, mas nada confortável. Quando, repentinamente, o trabalho foi interrompido:

— Parem, parem aí onde estão — disse a voz autoritária de uma mulher exibindo um crachá do Ministério do Trabalho.

Era uma mulher alta, encorpada, cabelos curtos, pintados de preto. Veio acompanhada de dois policiais militares, pedia que todos se aproximassem dela.

– Preciso dos seus nomes e que me respondam algumas perguntas — disse ela, sinalizando que nos aproximássemos.

Com um frio na espinha, segui os demais frentistas. A agente, conversava rapidamente, olhando a cada um. Os olhares nervosos dos funcionários, refletiam a preocupação quanto a seus empregos. Ela foi até o escritório conferir os cartões ponto. Paulão, sorrateiramente, me chamou. Com um gesto brusco, entregou-me o pagamento do dia e me dispensou.

— É melhor você ir, — disse ele, olhando de relance para a fiscal que preenchia um formulário de autuação e multa.

Ao sair, olhei para o posto. Senti que mais uma vez a chance me havia escapado. O último dia para o pagamento na universidade, se desvanecia, e com ele, a esperança de meu futuro, o peso de mais uma oportunidade perdida.

No entanto, mesmo em meio ao desânimo, uma voz interior insistia que, enquanto o tempo ainda fluísse, haveria espaço para um novo acontecimento.

Enquanto isso, no hospital… No labirinto do seu subconsciente, durante o coma, Lázaro se via perseguido por sombras que representavam seus medos mais profundos.

“… O corpo pesado, se PRECIPITANDO das NUVENS… A dor pulsa na cabeça… um martelo golpeando as têmporas. UM MAR DE NÉVOA… ROSTOS borrados… UMA VOZ DISTANTE… a voz chama um nome… um eco longínquo. Uma miragem em um deserto de consciência. UM GRITO SILENCIOSO ECOA EM SEU INTERIOR… A realidade e o sonho se entrelaçam… um CALEIDOSCÓPIO… imagens SURREALISTAS. VÔO por paisagens multicoloridas… ilusão. ABISMOS se ABREM sob os PÉS. Monstros.. grotescos… perseguem. FORMAS estranhas se contorcem… matam… mutam instantes. O TEMPO não há… a ETERNIDADE… um agora interminável. CAINDO LIVREMENTE… constante… QUEDA livre. O controle se esvaí… entrega… CORRENTEZA… costante. Nuvem salobra de MAR…”

Capítulo X – A Briga

Eva Jasmine Silva, chegou em casa. A vi chegar, cansada e feliz. Trouxe um terno preto, novinho, sobre as costas. O meu amado será, sem dúvida, o homem mais bonito da noite na colação de grau, sussurrou ela. Haviam se passado dois anos, cheios de reveses e dificuldades, mas enfim, eu conseguira!

Deponho os livros no aparador. Abraço Jasmine por trás, sinto calor em sua pele. Controlo-me para não espirrar. Jasmine e seus perfumes, pensei comigo. Vira-se e me beija apaixonada, a cabeça recostada ao meu peito. Sai, e em seguida retorna numa roupa mais confortável.

— Viu? Olha o que a mulher da sua vida comprou pra você! — disse ela, a turquesa dos olhos pintando o ambiente. Apanhou, com um gesto lânguido, o terno preto da poltrona.

Jasmine, ao dobrar o corpo, intencionalmente fez uma pose, mostrando o calçãozinho oculto entre as formas generosas da bunda e vértice das coxas. Essa mulher me dá um frisson, pensei, observando as covinhas que se formavam. Apesar da insegurança, e a briga constante com a balança, Jasmine me arranca suspiros. A carrego nos braços até o quarto. O terno fica para depois.

— Meu bem, o que achou do terno, gostou? — Jasmine, na ponta dos pés, fala medindo o paletó nos meus ombros — vista-o, para vermos como fica em você — disse, roubando-me um beijo, o olhar travêsso.

— Você está com os olhos tão brilhantes, né? — observei, ao fitá-la segurando-lhe os ombros macios — viu o passarinhos verde foi? — belisco a bochecha rosada.

— Jura que não sabe o porquê? Saímos do quarto agora, você me deixa assim, viu? — disse ela, levando a mão entre minhas pernas, ao abraçar-me, como se ainda desejasse muito mais.

— Bem, minha querida, vamos vestir essa beleza de terno, e ver como fica. Mas uma coisa é certa, meu corpo se encherá de brotoejas — falo caindo na gargalhada, meus olhos quase fechando.

— Ah! Por quê? — Pergunta assustada. Os olhos bem abertos, olhar ingênuo.

— Por falta de costume bobinha! — dou outra risada — esse corpo nunca sentiu algo tão fino, né? — falei ainda rindo, fazendo-a rir também.

— Viu? Esqueça desses tempos, você é o legítimo merecedor! Meu príncipe! — disse, ao afastar-se para ver-me vestido, as mãos no rosto, a boca aberta.

Deslizo a mão levemente sobre o presente, sinto a textura suave do tecido, o desenho dos botões, da lapela. Será mesmo que um novo tempo se apresentará agora?

Num vislumbre, volto no tempo…
O menino de calça curta, cercado por mecânicos numa grande oficina. A cesta de salgadinhos no braço vincado, atendendo a todos. Me tiram o boné branco e o devolvem cheio de graxa à cabeça. “Por que o senhor fez isso? Agora terei que voltar para casa… ainda tendo muito pra vender. Minha mãe… Como será?…” Os olhos rasos d’água, as mãos trêmulas, o fio da graxa preta escorrendo pelo pescoço. O ardume na cabeça, o cheiro de gasolina e óleo pestilentos a tocar-me a pele…

Com os olhos úmidos, retorno ao presente.

— Mas amor, isto é uma maravilha! — falo, ainda me olhando e descendo a mão sobre o traje — o teu bom gosto é inquestionável minha linda! Mas deve ter custado uma nota preta né? — eu disse, ainda com a etiqueta na mão. Os lábios esticados, a testa franzida, denunciando onde a conversa ia chegar.

Há meses, questiono Jasmine em razão de tantos gastos. Qual é a origem desse dinheiro, da onde vem, como o consegue? E ela, por sua vez, sempre desconversa, saindo pela tangente, sem nunca esclarecer o assunto.

— Querida, quando é que você vai me falar toda a verdade? — ponho-me à sua frente, a olho bem dentro dos olhos, agora sério.

Jasmine afasta-se, vai até o centro da sala, bate a mão na perna, balança a cabeça e força um sorriso.

— Viu? Lá vem você… Mas que verdade, meu amor? — ela fala ao virar-se para mim, mexendo nos cabelos — eu já cansei de repetir para você — silenciou, suspirando fundo, incomodada.

– Você disse que alguém te ajudou durante esse tempo, mas nega-se a dizer quem foi – me aproximei, sentei no sofá, os dedos tocando freneticamente na mesa de centro — Eu preciso saber, Jasmine — sentindo a aspereza, o leve odor da madeira. As veias pulsando em meu pescoço.

Durante o silêncio prolongado de Jasmine, penso:
Onde ela consegue esse dinheiro? Sua família não tem, nunca teve. Seu trabalho não a remunera tão bem assim. Será que ela está me traindo?, enquanto pensava, minhas mãos fechadas, apertavam-se até doer.

A penumbra da noite envolvia a sala de estar. As sombras projetadas nas cortinas ondulantes. Agora, atmosfera opressiva. Cravei os olhos negros em Jasmine, a tristeza neles agora tão profunda, pareciam abismos. Meus lábios se curvaram em um gesto amargo. Passei a mão nos cabelos, tentando reorganizar os pensamentos.

Jasmine, olha para o vazio, morde o lábio inferior, um gesto que conheço muito bem. apesar do silêncio por fora, é perceptível o barulho lhe atordoa por dentro.

— Eu já disse muitas vezes pra você: é uma pessoa que quer nos ajudar, mas que não quer aparecer, entenda — disse ela, tentando firmar seus olhos nos dele, sem conseguir.

Uma lágrima solitária escorria pelo rosto dela. Os meus olhos, ontem cheios de amor, agora faiscavam como uma tempestade.

— Você me engana há quanto tempo, Jasmine? — minha voz era um trovão, ecoando pelas paredes da sala, levanto-me num gesto rápido.

Jasmine não conseguiu responder-me. As palavras pareciam presas em sua garganta.

— Lázaro, eu te amo, viu? Você é a pessoa mais importante da minha vida. Mas eu preciso que você confie em mim — Jasmine suspirou, seus ombros caindo, os olhos cansados.

— Confiar? Você acha que eu sou idiota? — continuei, a voz cada vez mais alta. Meus olhos agora luziam frios.

Jasmine se encolheu no macio do sofá, a postura retraída denunciando sua vulnerabilidade. Seus olhos opacos, uma névoa se instala em sua alma. Cada palavra minha, a deixava mais exposta, mais frágil. Era como se estivesse sendo desvendada, camada por camada, até que não restasse nada além de sua alma nua e crua. O silêncio que se seguiu foi torturante.

— Você não me ama de verdade, né Jasmine? — Murmurei, a voz rouca — Se amasse, me contaria tudo — digo, coçando a testa, puxando meus cabelos.

Olhei-a fixamente, meus olhos negros de uma raiva incontrolável. A mulher que eu amava, me traia, estava quase certo disso. Inclino-me à frente, o olhar desfigurado.

— De onde vem todo esse dinheiro, Jasmine? Você acha que eu sou cego? Que não vejo que você vive acima das suas possibilidades? — Apontei para ela, o dedo tremia.

— Lázaro, viu? Por favor, me escuta. Eu já te disse, alguém está nos ajudando — ela murmurou, a voz quase inaudível.

Eu ri, uma risada amarga, o sarcasmo ricocheteando contra Jasmine.

— Alguém? Quem? Um anjo da guarda? Um gênio da lâmpada? Você me toma por imbecil né? — Rugi, a raiva me consumindo por dentro.

Comecei a andar de um lado para o outro, uma fera enjaulada.

– Jasmine, eu preciso que você me diga a verdade. Quem te dá esse dinheiro? E em troca do quê? – Minha voz carregada e áspera. Passo a mão na barba volumosa.

Ela encara um ponto fixo na parede. As rugas sob os olhos. Os lábios tremem levemente. As mãos entrelaçadas no colo, esbranquiçadas pela tensão. Encolhida, sentindo-se atacada.

Olho para o alto, a raiva borbulhando dentro de mim. Jasmine com o olhar distante, abalada.

— Eu sei que parece estranho, mas é a verdade. Essa pessoa pediu para manter tudo em segredo — disse ela, olhando para o chão, mordendo o lábio inferior.

Um quadro na parede, com uma paisagem serena, parece ironizar a tempestade que se abateu. A discussão se intensifica, nós dois nos aproximando, nossas vozes se elevando.
Franzo o cenho, apertando os lábios em uma linha fina. Meus gestos são bruscos. Bato o pé no chão com impaciência.

— Jasmine, você está me dizendo que alguém pagou a minha faculdade inteira, e não quer ser reconhecido? Isso não faz sentido algum, né? E o carro foi ele quem te deu também? — inquiri, procurando os olhos dela. Cruzo os braços e a encaro de frente.

Ela se levantou do sofá, caminhando em direção ao som da chuva que batia na janela. A vista da cidade se estendia à sua frente, mas seus olhos não estavam no horizonte.

— É a minha vida … … … Eu tenho o direito de saber quem porventura me ajudou tanto, não tenho? — a raiva borbulhava dentro de mim, uma lava incandescente.

Meus ombros, tensos. Continuo andando de um lado para outro, as mãos crispadas em punhos. Meus olhos transbordando desconfiança. A respiração mais pesada.

— Eu sei que você tem, mas essa pessoa pediu para que eu mantivesse tudo em segredo. Por favor, respeite a decisão dela, viu?

Uma nuvem densa nos envolve . Um silêncio absoluto. Jasmine se aproxima, seus olhos quase cerrados.

— Lázaro, por favor, me entenda. Eu só quero te proteger — falou com as mãos abertas à altura da cintura, as palmas para cima.

— Proteger de quê? De mim mesmo? — Vociferei, as duas mãos na cabeça.

— Eu já te dei tudo o que posso. Agora, por favor, me deixe em paz, viu? — disse ela, virando as costas.

— Você paga dois anos da minha faculdade, paga este apartamento, compra roupas caras, um carro novo… Como você consegue tudo isso, com o seu salário de jornalista? Ou está fazendo algo por fora?

Jasmine se aproxima de mim, os olhos apagados. Mexe no cabelo, num gesto nervoso.

– Lázaro, eu já te disse… – ela começou a falar, mas a voz falhou.

Jasmine, uma presa encurralada. Estava com medo? Temia ser descoberta?

– E quem é essa pessoa? O que você dá a ele em troca desse dinheiro? – Falo, desferindo um golpe contra a parede, meus olhos arregalados.

A ira evidente em meus gestos bruscos e em minha voz, cada vez mais alta. Sinto-me traído, enganado.

Jasmine engoliu em seco, seus olhos fixos no ponto onde a parede encontrava o teto. A cada segundo que passava, a tensão no ar se intensificava, como uma corda esticada prestes a arrebentar.

– Eu não posso te dizer, viu? Por favor, Lázaro, acredite em mim — ela fala entre soluços, a cabeça baixa. Morde o lábio.

— Como você quer que eu acredite em você depois de tudo isso? Está na cara. Você tem um amante que a mantém. Sua vagabunda. O que justificaria tanto segredo? — digo, bem próximo ao rosto dela, as duas mãos ao peito.

Jasmine se aproxima da mesa de centro e se senta novamente, cobrindo o rosto com as mãos.

— Você nunca acreditou em mim, e isso é direito seu, mas falar desse jeito comigo você não pode, quem você pensa que é? — bradou ela, se levantando com as duas mãos a revirar os cabelos.

Ela se vira para a janela e olha para a rua, o chiasso dos pneus no asfalto molhado, as lágrimas rolando pelo seu rosto. As mãos trêmulas, sua respiração acelerada.

A discussão se arrastou por horas, cada palavra, uma facada no coração. A confiança, uma vez sólida, agora, um frágil castelo, desmoronando tijolo por tijolo.

Os olhos de Jasmine se desviam dos meus, buscando refúgio em qualquer lugar. Ela morde o lábio inferior para conter as lágrimas. Aperta os olhos com força, tentando evitar que elas caiam. Ela se aproxima e coloca a mão em meu ombro…

— Sai de perto de mim! — a afasto, rude.

Ficamos em silêncio por alguns segundos, a tensão no ar era palpável.

— Eu preciso de um tempo para pensar — disse eu, levantando a cabeça, os olhos vermelhos, os lábios trêmulos.

Viro-me e saio da sala, deixando Jasmine sozinha, perdida em seus pensamentos.

Capítulo XI – A formatura

Eu não tive irmãos. Com a mãe já falecida e o pai com destino ignorado, não me restavam vínculos familiares. Sendo assim, optei pela colação de grau de gabinete, não tinha como gastar com festas. O que importava era ter chegado até ali. Essa era a grande vitória, o resto eram só detalhes. Essa decisão não agradou Jasmine, que pretendia que tudo fosse uma grande festa. No entanto, ela compreendia meus motivos. E ademais, depois da briga de ontem, já estava feliz em poder acompanhar-me.
Enquanto esperava a minha vez de receber o diploma, uma onda de lembranças invadiu-me a mente. O auditório parecia desaparecer, dando lugar a uma casa humilde, onde a tensão pairava no ar. Eu me via criança, as palavras de minha mãe ecoavam na cabeça: “Você não vale nada! Nunca será alguém na vida! Como consegui parir isso?” ” Apanhava da minha mãe. Ela se aborrecia comigo por qualquer motivo. Eu buscava auxiliar a família, vendendo petiscos na esquina, e engraxando sapatos para levar algum dinheiro para casa. Fazia tudo o que podia, mas, para ela, nada do que eu fazia era suficiente. As surras parecem sombras que me perseguem, e eu me questiono, apesar de todo meu esforço, se estou mesmo fadado a ser um fracasso.”
Nesse momento de reflexão, senti um nó na garganta. Eu não era mais a criança que apanhava e ouvia aquelas palavras dolorosas; tinha levantado, lutado e conquistado meu espaço. A ocasião tornou-se um momento para confrontar meu passado. Enquanto meus companheiros de classe recebiam seus diplomas, eu questionava se finalmente poderia deixar tudo isso no passado?
À medida que o momento se desenrolava, outra dúvida começou a assombrar-me: o segredo de Jasmine. “Por que ela se recusa a me dizer a verdade? Quem a tem ajudado durante todo esse tempo? O que ela dá em troca? O que ela esconde?” O sentimento de traição e insegurança ressurgiu, misturando-se com o orgulho que eu sentia por minha conquista.
A cerimônia, um símbolo de realização, torna-se também um campo de batalha para minhas emoções. Enquanto meus colegas recebiam seus diplomas, eu me perguntava se conseguiria superar, não apenas meu passado, mas também o peso do segredo que pairava entre nós. Seria possível deixar tudo isso para trás?

A doutora Martina foi a primeira a cumprimentar-me.

— Parabéns, Lázaro! Eu sempre soube que conseguiria! Você têm uma história de lutas e sucessos — disse ela, a luz do olho ampliada pelo toque na esmeralda do colar.

Com a minha mão sob a dela, o perfume suave de Martina envolvia-me em doces reminiscências. “Por muito tempo ela representou um oásis no meu deserto.
Passou pela porta, uma mulher linda, alta, esguia e dona dos olhos mais verdes que eu já havia visto até então. Ela usava um vestido longo florido, os pés numa sandália rasteira, e como anjo, flutuava na pequena sala reservada do presídio. As visitas na clínica e as sessões mensais, que se estenderam por mais um ano após minha saída. Os cafés, depois de tudo passado, as nossas conversas de bar, por vezes em companhia de Pedro e de suas amigas. Seus olhares cruzados com os meus, os toques furtivos de mãos… “Esqueça Lázaro, o que a doutora Martina, psicóloga, doutorada em Harvard, poderia querer com você? Afinal quem você é?”, uma voz oculta, gritava em mim.O fato é, e isso já me deixava muito feliz, ela estará sempre por perto.”

— Obrigado, doutora. — falei, ao ser interrompido.

— Olha, esqueça o “doutora”. Não estou aqui para trabalhar. Estou muito feliz pelo que esse momento representa — respondeu ela, segurando minhas mãos, uma expressão pulsante.

Jasmine, visivelmente enciumada, engatou meu braço, lançando um olhar intenso para Martina, que se afastou, deixando no ar seu perfume almiscarado.

— E aí, meu herói! — exclamou Yosef, aproximando-se e envolvendo-me em um abraço caloroso. — Amigo, só agora meu pai entendeu porque venho adiando tanto a viagem.

— É uma honra para mim, meu caro! — respondi, sorrindo.

Não pude evitar que as memórias me transportassem de volta à situação em que nosconhecemos. “Foi naquela cela escura que salvei sua vida. Horas depois, ao retornar do ambulatório, nos apresentamos ele me agradeceu pelo feito. Conversamos muito sobre a vida e os motivos que nos levaram até lá. Dois dias depois, fui levado ao parlatório para ver um advogado. Olhei, admirado, ele assentiu num meneio de cabeça. Era o seu advogado, ali, posto à minha disposição. Na verdade, fora ele o meu salvador.

Enquanto isso, a atmosfera na sala se encheu de rostos conhecidos.

— Meus parabéns, meu nobre jornalista! Desejo-lhe todo o sucesso daqui para frente! — disse doutor Salomão ao estender-me a mão.

Volto no tempo e, num átimo, revivo a primeira vez…
“Lázaro, é isso? – indagou um homem alto e simpático, vestindo um terno preto, com uma camisa branca e uma gravata vermelha. Ao estender a mão, um anel dourado brilhava em seu dedo, ostentando o símbolo do Direito sob uma pedra vermelha. Eu e o advogado nos encaramos através do vidro à frente, conversando por um aparelho telefônico. “Meu nome é João Carlos Salomão, sou seu advogado. Fui contratado pelo doutor Jacob Barenstein, pai do Yosef. Peço que assine esta procuração para que eu possa representá-lo a partir de agora. Ele deslizou algumas folhas e uma caneta sob o vidro. “E o que aconteceu com você aí dentro? E esse nariz quebrado? Foi a polícia?” “Não, doutor… foi só uma briga”, eu disse , pressionando o pano contra o nariz, enquanto minha mente vagava, “o quanto custaria contratar um advogado daquele nível?” “Não se preocupe, vamos tirá-lo dessa logo”, disse ele, com um olhar que transmitia calma. “Mas preciso que me conte tudo, até o que não diria para a polícia… ou para sua namorada”, emendou ele, com um sorriso profissional, abrindo uma caderneta de anotações. Hesitei por um momento… e comecei a falar: “sou usuário diário de cocaína. O vício acabou se tornando caro demais, então passei a vender pequenas quantidades, para sustentar o meu consumo, né? ” “Escuta bem, meu jovem”, disse ele com firmeza. “A partir de agora, você falará apenas com o juiz. Não diga nada mais à polícia. E lembre-se, você nunca vendeu cocaína. Você é um usuário dependente químico, entendeu? Essa é a verdade que vamos sustentar. Combinado? Vou ver como resolver isso. Pode contar comigo.”
Enquanto falava, ele fechava a pasta e, com um aceno, se despediu.
Na tarde do dia seguinte, eu já estava sozinho no cubículo. Era o que chamavam de “seguro”, uma área reservada para quem corria risco de vida. Yosef havia sido levado ao fórum e, de lá, saíra em liberdade. Alguns dias depois de assinada a procuração, o advogado Salomão protocolava a petição de instauração de Incidente de Dependência Toxicológica no juizado. Foi aí que vim a conhecer a doutora Miriam Martina Torquatto, psicóloga forense. E foi com base no laudo emitido por ela, que o juiz sentenciou-me a um ano em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. Sem a concorrência conjunta de de Salomão e Martina, eu seria condenado por tráfico. Morreria na cadeia ou, no melhor das hipóteses, mofaria por quinze anos ali.”

Pedro Dantas, doutor Jacob, a irmã de Jasmine, entre outros amigos, acercaram-se de mim. O clima era de solidariedade, onde cada um, trazia consigo uma história entrelaçada à minha.

Matias caminhou, tranquilo, em minha direção. Seu blazer preto, balançando suavemente. A corrente de ouro brilhava sob as luzes da sala.

— Parabéns meu lindo! Você conseguiu. Eu sabia que conseguiria — disse ele sorrindo, as bochechas suadas. Em um gesto rápido, quase imperceptível, deslizou um pequeno papel no meu bolso.

Senti o peso do papel como se fosse uma pedra. Ergui os olhos para Matias. Ele dá um sorriso enigmático para Jasmine, e sai.
Ela, sem correspondê-lo, observava a cena. Seu rosto rígido, o olhar afiado como lâmina. Vi quando os olhos dela se estreitaram, fixando-se no meu bolso.
Tentei afastar a sensação desconfortável. Era só um número, só isso. Mas algo no jeito como Jasmine me olhava, fazia meu estômago revirar. Sorri para ela, um sorriso plástico, hesitante, não o suficiente para dissipar a tensão que pairou entre nós. As mãos entrelaçadas, como se tentasse manter o controle de si. Ao virar-se, nada disse, apenas me olhou nos olhos.

— Viu? O que Matias colocou em seu bolso? — A voz dela era baixa, quase um sussurro, mas o tom carregava peso.

— Nada. só um telefone. Nada que importe! — Tentei soar casual, mas o som das minhas palavras soou vazio em meus ouvidos. — Da onde você conhece Matias? — indaguei, rapidamente.

— Ora, daqui mesmo… — disse ela, dando de ombros. Mexeu nos cabelos olhando pro piso.

— Mas eu não o apresentei a você, né? Então… — silenciei, uma das mãos no bolso. Olho para ela, procurando seus olhos.

— Sei lá… devo ter ouvido por aqui — disse ela, mordendo o lábio de baixo. Apertando as mãos uma na outra. O rosto pálido.

Os olhos de Jasmine se voltam, lentamente, ao meu bolso. O silêncio entre nós é recheado de perguntas não formuladas. Meu coração, acelerado, sente: Ela está escondendo algo de mim, não está?

O clima amenizou, ao ouvirmos a voz de Pedro Dantas.

— O doutor Jacob e eu, estamos convidando a todos para um jantar, em homenagem ao nosso amigo, por mais esta merecida vitória. E, meu velho, queremos discurso! — Pedro falava a plenos pulmões, os braços erguidos, ao lado de Jacob. O médico, discreto, assentia com a cabeça. — E um detalhe: hoje, excepcionalmente, um Lázaro sem livros! — disse ele em tom de galhofa! Todos riram em uníssono pela observação.

Capítulo XII – A Despedida

Do outro lado da cidade, no movimentado aeroporto, os terminais pulsavam entre despedidas e reencontros. O ar condicionado soprava frio. O aperto no meu peito. O barulho da multidão, um mar de vozes misturadas numa melodia caótica. A cada passo que dava em direção a Yosef, a saudade que sentiria me invadia com força. Eu e doutor Jacob, entre outros amigos, nos reunimos para despedir-se de Yosef, antes da sua partida. O som distante dos anúncios, ecoava pelo saguão, misturando-se ao murmúrio de vozes e ao som de malas sendo arrastadas.

— Aí, Sorbone, hein?! Represente bem o Brasil lá, menino! — Coloquei o braço sobre os ombros de Yosef, forçando um sorriso para disfarçar a emoção que me dominava. Os olhos de Yosef, brilhavam com uma mistura de entusiasmo e tristeza.

— Vou sentir saudades, meu herói — respondeu Yosef, apertando meu braço. A voz dele falhava levemente, denunciando a emoção que tentava controlar.

O doutor Jacob, de semblante sério, se aproximou. Seus olhos, cansados e profundos, percorreram o rosto de Yosef, como se estivesse tentando gravar cada detalhe daquele momento.

— Este vai ter que se sair melhor que o pai — disse ele, a voz rouca pela emoção. Uma lágrima escorria pelo rosto de Yosef, que rapidamente a enxugou.

— Com certeza, se sairá muito bem. Já melhor que o pai, só o tempo poderá dizer, né? — Intervi, olhando para Jacob e notando a seriedade em seu olhar.

Yosef, olhando para um lado e outro, puxa-me pelo braço, em um gesto de confidência.

— Amigo, peço que estreite sua relação com meu pai. Ele gosta muito da sua companhia… — A voz de Yosef embargou, e ele precisou fazer uma pausa para se recompor. — Não é preciso dizer o quanto o admira. O velho Jacob anda muito solitário desde a partida de mamãe… quase trinta anos, sabe como é… — disse ele, a emoção tingia sua voz, a mão sobre meus ombros. Passo a mão sob os olhos.

— Claro, meu amigo! Vá tranquilo, estarei sempre por perto. Tenho o seu pai, assim como a você, em alta consideração — disse, olhando firme para Yosef, sentindo o peso da responsabilidade.

— Sei que posso contar com você, Lázaro. Você é mais do que um amigo, é um irmão que a vida me deu. — Yosef, apertou a minha mão. Os olhos brilhando com uma mistura de gratidão e tristeza.

Enquanto Yosef conversava com o pai, observei os dois, perdido em pensamentos. A vida, é uma reação que se desencadeia em múltiplas rotas, interagindo, aparentemente, de maneira caótica e aleatória. Mas, a longo prazo, percebe-se que ela é uma teia perfeita e muito bem sincronizada. Um fato leva a outro, e a outro… sem entendermos nada a princípio. Contudo, com o passar do tempo, notamos que tudo conspira para um determinado fim e direção. Quais e quantas outras teias a vida ainda torcerá?

Yosef, despediu-se de todos os amigos. Pai e filho, se emocionaram em um caloroso abraço. Yosef e eu, em um aperto de mão, entendemo-nos no olhar. Eu, sem saber o porquê, sentiu uma estranha inquietude pelo fato de, talvez, nunca mais voltar a vê-lo. Com um gesto de amizade, estendi meu braço, sobre os ombros de Jacob, e o acompanhei até sua casa.
Jacob, homem de poucos sorrisos, de fala ponderada e direta, nutria por mim, um profundo respeito pela minha história de vida. Além é claro, da eterna gratidão, por eu ter arriscado a própria vida, para salvar a de Yosef, mesmo sem conhecê-lo ou saber de quem se tratava. Enquanto caminhávamos, eu observava Jacob, entristecido, absorvendo a melancolia do momento. O eco da despedida, ainda ressoando em seu coração. Ao lado do amigo, minha mente começou a flutuar, para um momento distante, uma cena que surgia como uma sombra: “Fui contratado pelo doutor Jacob Barenstein, pai do Yosef. Meu nome é João Carlos Salomão, advogado. Peço que assine esta procuração, a partir de agora serei o seu defensor.” Meu defensor”, essas palavras aqueceram minha gratidão.

Tudo o que se passa aqui, é o passado de Lázaro revivido por ele do interior do coma, sua luta pela sobrevivência, o confronto com seus erros e acertos. Ele é o juiz e o jurado…

“… MÃEZINHA falta uma parte em mim… VÁCUO… queda abrupta… vejo suas RUGAS… lágrimas… CABELOS louros… agitação… pranto… DUPLA FACE… coração… MINÚSCULO… morte… A espada sobre a cabeça… GIDEÃO… vaga vida… LIVRO… páginas ARRANCADAS… peito… pena… GRADES enferrujadas… FERRO… CHOQUE… cadeias… GRILHÕES… Menino só… grito por dentro… IMPLOSÃO… Fardamento… BOTAS… MARTINA… olhos… MARES azuis… verde celeste… PULSO… adorno… pulsação… Rocha… areia… vidro… BARRETO… tridente… RISADA louca… paranóia… MATIAS castelo… Olha MÃE pra mim… tire-me… ESCURO véu… Liberte-me… PORTA CERRADA… terra… corda… Acorda PAI… MENINO de rua… chapéu… joelho… cinto… SOPHIA… ANA… avião YOSEF… fogo… Hitler… ELIZABETH… Gêmeas torres… solte-me… ABRA… Lei… MARTELO… vejo pra DENTRO… Estou LÁ em mim… NUVENS CASA PÁSSARO… estrondo… PEITO… telhado… CAIXÃO sem ar… fechado… bato os PÉS… agonia… Os grandes OLHOS me julgam… BOCAS me condenam… mãos ABSOLVEM… longa ESTRADA… não vejo fim… a RETA no horizonte… O COLO AQUECIDO… hálito da RAIVA… amargo… ÚTERO..Proteção… VOLTA pra casa… PAREDE FRIA… Perdão… BEIJO…”

Capítulo XIII – O Diálogo

Jacob e eu, passeávamos distraídos, filosofando a cerca da existência de Deus, da sua presença e do sentido da fé. O bate-papo seguia calmo, salvo uma ou outra alteração na minha voz. Quando nos demos conta, já estávamos de volta à casa. Entramos em uma sala ampla, com uma estante enorme, cobrindo toda uma parede. Havia muitos livros, discos e peças de porcelana judaica, verdadeiras obras de arte. Eu, a cada visita, me apostava diante de uma ilha, em madeira nobre, carregada de fotografias dos Barenstein e suas várias gerações. Admirava-me do orgulho, com que Jacob lembrava da biografia de cada um deles. O aroma do café fresco, preparado por ele, preenchia o ar. O fim de tarde semeava seu frescor.

— Jacob, desculpe se estou sendo indiscreto, mas é apenas uma curiosidade boba. Se sua família se resumia a três pessoas, por que oito quartos na casa? — disse eu, olhando para a escadaria que levava ao andar superior. Minha cabeça erguida, o olhar surpreso.

— É a sensação que, de uma hora para outra, tenha que dar abrigo a famílias em fuga. Você entende? — Disse ele, olhando para os sapatos polidos. Tira os óculos, enxuga uma lágrima esquiva.

— Sim, eu entendo — levando a mão às costas do amigo. A cabeça baixa em sinal de respeito. A Alemanha nazista, pensei.

Nós dois, permanecemos em silêncio, lembrando a despedida de Yosef. O ruído suave do relógio na parede, parecia intensificar a quietude da área de estar. Jacob, deteve-se a olhar para uma gravura emoldurada à parede. Herança de sua mãe, que a trouxe em sua bagagem de mão, feita às pressas. Tempos difíceis aqueles, eu na barriga de minha mãe… Chegamos dos Estados Unidos, após a fuga do nazismo; um golpe de sorte, pois muitos dos nossos, pereceram por lá. No Brasil, sem conhecer ninguém, fomos amparados pela Família Barreto. Quando menino, lembro, como se fosse hoje, dos meus dois primeiros amigos, Gideão Guimarães, filho do senhor Barreto e, Expedito Salomão, um agregado à família. Meus pais, com a ajuda dos Barreto e da Comunidade Judaica, logo se estabelecerem com um pequeno comércio. Então, aparentemente, todo aquele inferno de Hitler e seus asseclas, ficou para trás. Mas as memórias ainda doem, não só no espírito, mas também nos ossos…

Olhei para os lados, baixei a cabeça, trisquei a testa. Inquieto, por ter tocado numa ferida, ainda não de todo cicatrizada, alcei o corpo e mudei o rumo da conversa.

— Desculpe, eu sou uma criança curiosa, né? — Fiz cara de menino travêsso — e o que tem nesta sala? — firmando a ponta dos dedos na porta. O olhar de incógnita para Jacob.

O médico, sem nada dizer, pega uma chave no molho e abre a porta. Fico estarrecido com tanta beleza e devoção! Jacob vai nominando cada um dos valiosos objetos.

— Este é o Talit, este o Tefllim, o Shifar, o Quipá, Sefer, Shtreimel, este o Sucá e a Torá. São todos artefatos sagrados no judaísmo — disse ele, com reverência olhando para mim. Os pequenos olhos ficaram ainda menores.

— Eu acho tão lindo tudo isso, esse respeito ao valor histórico desses objetos, a tradição, a cultura e tudo o mais… — dizia eu, ao ser interrompido por Jacob.

— Mas não significa nada além disso para você — completou ele. As pestanas erguidas, ajeitando-se no assento à minha frente.

Dei um longo gole no café. Tentei me acomodar melhor na poltrona marron, desgastada pelo tempo, moldando-se ao meu corpo. Mexi os ombros, como se pudesse assim, afastar o incômodo que crescia no fundo da mente.

— Você sabe que não acredito nessas coisas — murmurei, olhando para a xícara em minhas mãos, o vapor subindo lentamente. — Essa história de paraíso, de milgre, de algum propósito superior… tudo isso morreu junto com minha mãe.

Jacob, ereto na cadeira à minha frente, cruzou as pernas. Ele se inclinou levemente, seus olhos estreitos, acompanhando meu rosto com interesse renovado. Ele colocou a xícara sobre a mesa, fazendo o som leve da porcelana quebrar a calmaria.

— Sua mãe era uma mulher de fé — disse Jacob, numa voz baixa e tranquila. Ele passou a mão pelos óculos, ajustando-os enquanto observava meu rosto cansado. — Acreditava que Deus tinha um propósito para você, mesmo quando tudo parecia perdido.

Cerrei os olhos por um instante, sentindo uma pontada no peito. As memórias da infância, invadiram minha mente, com uma força quase física. Eu via minha mãe de joelhos, orando fervorosamente, em meio aos bancos de madeira enfileirados. O cheiro forte de hálito e perfume, o que eu costumava odiar na igreja, de repente estava presente ali, de novo, agora misturado ao ranço do passado. Abri os olhos, respirando fundo.

— Ela acreditava, sim — disse, com um tom amargo na voz — acreditava que Deus ia salvá-la, que Ele tinha um plano… mas a realidade é outra, Jacob. Se Deus existisse, não teria nos deixado sofrer como sofremos, né?

Jacob permaneceu imóvel, apenas ouvindo. Seus olhos serenos não julgaram, apenas esperaram. Ele sabia que aquela mudez, dava a mim, espaço para continuar, mesmo que minhas palavras viessem com o peso da dor. Mexi-me endireitando o corpo. Ouvi o ranger da cadeira sob meu peso, o cheiro familiar de couro velho e madeira, enchendo minhas narinas.

— Eu sou ateu, Jacob. Já vi o suficiente para saber que não há nenhum plano divino. Só caos e… … … escolhas. O mundo é frio, e estamos sozinhos nele.

Jacob afagou o queixo levemente, os dedos sentindo a aspereza da barba ainda por fazer. Ele refletia, como sempre fazia antes de responder. O ambiente em nosso entorno , parecia se abrandar com a queda da tarde, a luz do sol se esvaindo pelas cortinas verdes.

— Eu entendo a sua dor, Lázaro. — Jacob finalmente falou, a voz tranquila preenchia o espaço. — Mas sua mãe, via a vida de uma forma diferente. Para ela, a fé não era sobre a ausência de sofrimento, mas sobre encontrar forças para enfrentá-lo.

Ri, um riso amargo e seco espraiando-se pelo aposento vazio. O que ele está dizendo? Ora, se não existisse o sofrimento, não se necessitaria de forças, pensei.

— Claro, fácil falar, quando se tem uma religião que oferece respostas prontas, né? — Eu disse, gesticulando, quase derramando o café. — Você, judeu, cresceu ouvindo sobre promessas de um Deus que protege o seu povo, que escolhe quem merece ser salvo…

Jacob, ergueu uma das mãos, interrompendo-o calmamente.

— Não é tão simples assim, Lázaro. — Ele descruzou as pernas, inclinando-se um pouco mais à frente. — Ser judeu significa, acima de tudo, questionar. Minha fé não é cega. A tradição judaica incentiva o debate, o questionamento. A relação com Deus é uma conversa constante, não uma aceitação passiva. Às vezes, nós brigamos com Ele.

Ergui a sobrancelha, intrigado, coloquei a xícara de café na mesa ao lado, como se estivesse me preparando para digerir aquelas palavras. Lá fora, o vento começava a soprar leve, movendo as árvores. As sombras da noite vinham mais rapidamente agora, preenchendo os cantos do salão.

— Brigam com Deus? — Eu disse, vincando a testa, incrédulo.

Jacob balançou a cabeça aquiescente, apurou os óculos.

— Sim — respondeu ele, com um gracioso sorriso. — Muitos profetas questionaram a Deus, duvidaram Dele. Abraão, Moisés… até Davi. A fé judaica não exige obediência cega, mas diálogo. O que você está fazendo agora, com sua raiva e descrença, não é muito diferente do que muitos já o fizeram antes. O que você chama de ateísmo, talvez seja, no fundo, uma forma de diálogo com algo que você nega. Uma briga, talvez.

Bufei, ainda cético. Mas algo naquelas palavras mexeu comigo. Brigando com Deus… Eu repetia em pensamento. Era como se a raiva, que eu sentia há anos, a frustração com as injustiças da vida, ganhasse um novo sentido. Cruzei os braços, encarando o amigo. As linhas em meu rosto, pareciam mais duras, sob a luz tênue. Senti a caseira sensação de conflito interno, crescendo novamente, como se eu estivesse lutando contra algo que sempre tentara driblar. Jacob descansou na cadeira, observando- me. Seu olhar era firme, mas gentil. Ele não pressionava. Não havia julgamento ali, apenas uma presença tácita e paciente.

— Talvez não seja uma questão de acreditar, mas de se permitir questionar — disse Jacob, cruzando as mãos no colo. — A fé não é uma certeza, Lázaro. Ela pode ser uma busca, uma conversa, uma luta. E talvez, um dia, você encontre respostas… ou ainda mais perguntas.

O vento lá fora uivou brevemente, fazendo as árvores baterem nas janelas. Olhei para o lado, como se aquelas palavras me tivessem atingido, de uma maneira inesperada. Eu sentia algo diferente dentro de mim, uma confusão, e não sabia como processar. As pernas esticadas, a cabeça voltada ao teto branco. A quietude planou entre nós novamente, mas agora aparentava menos abafada, mais contemplativa. Jacob se elevou devagar, colocando a mão no meu ombro. Um gesto sincero de amizade. O compartimento estava um tanto imerso na escuridão, exceto pelas poucas luzes que começavam a se acender na rua. Virei o rosto para a ventana, observando o sol, já baixo no horizonte. O remanso entre nós se estendeu, aconchegado. Talvez eu estivesse, pela primeira vez, encarando não só a vida e a morte, mas também minhas próprias crenças, ou a falta delas.

— Compreenda, Lázaro, a luta nunca é fácil, mas você não precisa enfrentá-la sozinho.

Permaneci em silêncio, os pensamentos rodopiando como folhas ao léu. Jacob afastou-se em direção à cozinha, deixando- me imerso na obscuridade, nas perguntas não respondidas, que ainda voejavam no ar. A cala entre nós durou um pouco mais, como se o próprio ar, estivesse rarefeito com as perguntas não feitas e as respostas não ditas. Afligido, eu batia os dedos na xícara de café. O olhar baldado na janela, o arrebol começava a apagar as cores do dia. A dependência da morada de Jacob, absorvida em uma serenidade morna. O tilintar de uma colher caindo contra a cerâmica…

— Não sei como você logra continuar acreditando, Jacob — disse eu, quebrando o remanso, a voz carregada de suspeição. Voltei-me a mirar o amigo, os olhos escuros como tempestade.

Jacob expirou fundo, os olhos estreitos. Olhou para a estante, as fotos de família. Mencionou o filho.

— Yosef e eu… temos nossas diferenças — admitiu ele, a seriedade marcando seu rosto, — ele questiona muito mais do que eu. Já me acusou, até de me esconder atrás da religião, de buscar respostas fáceis. Às vezes, eu também sinto que ele se distancia do que acredito. Mas ao mesmo tempo, o que ele questiona, é algo que sempre esteve presente na nossa fé. A dúvida faz parte da jornada.

Jacob gesticulou levemente, como se tentasse abraçar as palavras que saíam de sua boca.

— Fé e dúvida não são opostos, Lázaro. A dúvida é o que mantém a fé viva, o que nos força a continuar buscando. Se você apenas aceitar a tudo cegamente, sem questionar, o que realmente significa acreditar? Fé, para mim, é a capacidade de seguir em frente, mesmo quando você não tem todas as respostas. E isso não significa que você não pode ficar com raiva, sentir-se perdido ou mesmo, duvidar da existência de Deus.

Nivelei a cabeça, o semblante endurecendo, batendo com força, a mão, contra a própria perna. Minha voz sobe o tom.

— Isso parece desculpa — respondi, oscilando entre a dúvida e o fervor. — Uma forma de justificar tudo o que acontece de errado no mundo. Se Deus existe e permite o mal, então que tipo de Deus é esse, né?

Jacob cruzou as pernas, endireitando-se na cadeira, olhava para mim com uma seriedade crescente. O clima no cômodo jaz sem gravidade, algo vagaroso flutuando na atmosfera.

— Essa é uma pergunta que muitos de nós, judeus, fizemos durante o Holocausto, Lázaro. Eu perdi parentes na Alemanha, você sabe disso. Famílias inteiras dizimadas. E, sim, nós nos perguntamos: onde estava Deus naquele momento? Por que Ele permitiu aquilo? Por que Ele não interferiu?

A menção dos parentes perdidos fez o vácuo parecer espesso. Divisei o negrume de tristeza, nos olhos de Jacob, um peso que, mesmo anos depois, não havia se desvanecido. Olhou para cima, incerto de como responder, a mente girando. Aprumei-me na poltrona, a voz mais branda, a cabeça baixa, atrito a testa.

— E qual é a resposta? O que a fé diz para isso? Para o genocídio, a dor, o sofrimento? — Indaguei, os olhos esgazeados, um olhar de inquisidor.

Jacob ficou em silêncio por um momento. Os olhos distantes, como se estivesse revisitando memórias tenebrosas.

— A fé não nos dá uma resposta simples, Lázaro. Não há um motivo que possamos entender completamente. Alguns de nós acreditam que o mal é a ausência de Deus, que o mundo tem o livre-arbítrio, e que as ações humanas, por mais horríveis que sejam, são parte da liberdade que temos para escolher entre o bem e o mal. Balancei a cabeça, a amargura ainda presente em meu semblante. Passo a mão no cabelo, um suspiro profundo.

— Isso soa como uma justificativa para deixar o mundo desmoronar. É o livre-arbítrio, então Deus não pode fazer nada. É como lavar as mãos da responsabilidade.

Jacob fez uma pausa, seu olhar fixo em mim. A intensidade de suas palavras aumentando.

— Talvez — disse ele, com um suspiro — talvez seja isso que pareça. Mas a fé, não é sobre entender por que o mal existe. É sobre escolher continuar, mesmo no meio da escuridão. Você pode se afastar de Deus, pode rejeitá-Lo, mas Ele continua presente, mesmo quando parece ausente. A nossa tarefa, acredito, é tentar melhorar o mundo, mesmo que não entendamos tudo.

Olhei para o teto, as palavras de Jacob reverberando no meu íntimo. A discussão fazia lembrar minha mãe, Maria Madalena. Ela dizia algo parecido, quando eu era pequeno. ajoelhada em oração, pedia força para continuar, mesmo nos momentos de maior provação. Mas eu havia me afastado disso, há muito tempo. A vida me endurecera, e minha visão sobre o mundo, havia se tornado amarga e prática.

— Minha mãe, dizia que Deus sempre estaria lá para mim — murmurei, quase como se estivesse falando comigo mesmo. — Mas Ele nunca apareceu, Jacob. Quando eu mais precisei… não havia ninguém. Só eu e os fantasmas que o mundo criou.

Jacob o observou, a compreensão silenciosa iluminando seu rosto.

— Às vezes, Lázaro, não é que Deus não esteja lá. É que estamos com tanta dor, com tanta raiva, que não conseguimos vê-Lo. Às vezes, Ele se manifesta nas pequenas coisas, nas pessoas ao nosso redor. Você salvou a vida do meu filho, Yosef, quando ninguém mais o faria. Talvez, naquele momento, você tenha sido o reflexo de algo maior, sem nem perceber.

Mantive-me calado por um longo tempo, refletindo sobre aquilo. Lembrei-me de Yosef, daquele momento decisivo em que, arriscando a própria vida, eu o defendera, mesmo contra todas as probabilidades. Na época, eu agira por instinto, sem pensar. Mas agora, as palavras de Jacob davam uma nova luz ao que havia acontecido. Compreendo agora o valor desse ato para Yosef e Jacob. A A fuga para a sobrevivência… da violência de terceiros, refleti.

— Talvez, mas isso não torna-me um crente, né? — eu disse, a amargura ainda presente, mas com menos intensidade.

Jacob deu um leve sorriso, mas os olhos permaneciam sérios.

— Não precisa se tornar um crente para fazer o bem — Jacob respondeu calmamente. — Fé não é um contrato de exclusividade. E o bem que você faz, Lázaro, não precisa de um rótulo. Só precisa existir.

Eu não tinha resposta para isso. Mas, de alguma forma, aquela conversa, aquele embate entre descrença e fé, me tocara mais do que o esperado. Talvez a verdadeira luta, não fosse entre eu e Deus, mas entre eu e a ideia de que, no fundo, ainda buscava algo em que acreditar, mesmo que fosse apenas em mim. Talvez a fé não seja uma questão de acreditar, mas de ter esperança em algo maior do que nós mesmos. Jacob se levantou, ajeitando os óculos sobre o nariz e lançando um último olhar para mim, a luz do lampadário refletindo em nossos rostos.

— Alegre-se — disse ele, em um tom paternal — lembre-se: a batalha continua, mas não precisa ser travada sozinho.

E, assim, Jacob calou, deixando-me com meus pensamentos e as sombras do que eu poderia ter sido, ou do que ainda poderia ser. Levantei-me lentamente, o peso da conversa ainda presente em meu coração. Olhei para Jacob, que permanecia sereno, observando-me, com uma expressão de compreensão meditativa.

— Agradeço por tudo, Jacob — eu disse, a voz carregada de emoção. — Eu vou embora agora, mas essas palavras ficarão comigo.

Jacob assentiu, um leve sorriso surgindo em seus lábios.

— Estarei aqui, quando você estiver pronto para conversar mais — respondeu Jacob, suas mãos cruzadas à frente, como se quisesse transmitir apoio sem precisar de palavras.

Caminhei até a porta, sentindo o peso das reflexões que ainda em minha mente. Enquanto deixava a casa, o céu acendia suas primeiras estrelas. Senti, pela primeira vez em muito tempo, como se houvesse um caminho a seguir, mesmo que cheio de incertezas.

Capítulo XIV- Jasmine

A redação do Hora Zero era imensa. O alvoroço de pessoas entre mesas, computadores e telefones era uma constante. Jasmine, ao sair para o horário do almoço, encosta por um breve momento à parede do corredor. O cenho fechado, os braços caídos, a mão aberta contra a textura. Ela repassava a resposta do chefe de redação. “Não temos perspectiva de contratação“, disse ele, lembrando, “e a política da empresa proibe a manutenção de funcionários com relações pessoais entre si”, disse agitando a cabeça negativamente. Mas talvez um estágio… Pensava ela. Assim, Lázaro poderia mostrar suas habilidades e se integrar ao ambiente da redação. Afinal, ninguém melhor do que ele para dar uma nova perspectiva ao jornal. Lázaro era determinado e ela sabia que ele precisava de uma chance, uma oportunidade para provar seu valor. Jasmine suspirou fundo, pulsando as veias. O que eu preciso é de uma estratégia. Talvez eu possa organizar um projeto em que Lázaro seja um colaborador. Um artigo, uma série de entrevistas… Algo que chamasse a atenção do editor e dos leitores. Ela sorriu para si mesma, os lábios relaxados num curto sorriso, imaginando a cena. Lázaro, com seu olhar penetrante e suas palavras afiadas, seria a adição perfeita à equipe. E eu tenho como conseguir isso. Ah! Se tenho! Determinada, ela seguiu em frente, a ideia crescendo como uma chama em sua mente. Caminha apressada pela calçada, para o almoço. O sol de dezembro, implacável. Sua pele, úmida e pegajosa, castigada no calor abafado do verão. As luzes piscam invisíveis nas lojas enfeitadas ao clarão do dia. Música de Natal, tilintar de sinos, o barulho de pessoas conversando animadamente nas ruas. Jasmine distrai-se admirando vitrinas, sem parar de pensar em Lázaro. “O que será que está acontecendo com você, Lázaro?” Ela se pergunta, os olhos tristes sob os óculos escuros. Os enfeites festivos se tornam um borrão ao redor. A multidão se aglomera nas ruas, empurrando carrinhos de compras lotados. A dor a invadindo. Você está se afastando de mim, e isso me assusta. Vem se portando de uma maneira estranha… telefonemas que parecem codificados, sumiços por horas… E as suas roupas caras… o belo e bem localizado apartamento alugado há poucos dias. Como pode um subemprego qualquer sustentar um estilo de vida tão elevado?” Seus lábios se movem, trêmulos, quase audíveis. O rosto vermelho. Só Deus sabe o quanto desejo que você se dê bem, mas há algo aí que não entendo. Espero que isso não lhe traga complicações no futuro. Ele é um bom homem, mas as marcas que carrega na alma, o tornam impulsivo em suas decisões.
Entre um pensamento e outro, flashes do passado vieram à sua mente. Lembrou-se dos momentos felizes que viveram juntos, quando riam e faziam planos no campus da universidade. Iam a cinemas e barzinhos…

As imagens do primeiro encontro vêm à sua mente, como ondas precipitadas contra um rochedo.” Seus olhos, assim como o mar azul, convidam-me para o mergulho… Jasmine…”, repetiu ela, saboreando a cada letra. Como você sabe meu nome? “Ouço sempre sua amiga a dizê-lo.” E como um homem como você me passou despercebido? “É que me escondo atrás da capa”, ele falou sério. Mas cadê a sua capa? “Hoje eu não a trouxe, por isso você me vê agora!” Então sorriu e, ao sorrir, assim como um posseiro, invadiu meu coração…

“Flores para a minha amada!” Estendendo-me o pequeno buquê. “Isto custa caro!”, Eu dizia. “Nada, roubei do jardim da universidade!” O seu sorriso de estrelas. O abraço aconchegante… Aquele Lázaro sonhador, que apesar de suas feridas indeléveis, fazia-me acreditar em um amanhã muito melhor, mas que agora parecia distante. Ele ainda suspeita de mim, pensou com tristeza. Ele nunca superou o fato de eu não ter revelado quem vem me ajudando. E eu no seu lugar, também não ficaria assim? E por que não revelo? Com certeza ele não entenderia as razões nem os motivos… Ela redirecionou a atenção, ao atravessar a rua movimentada, entre semáforos e barulho de caminhões de entregas, buzinas, motor de ônibus. Ela detestava saber, que a dúvida entre eles se tornara uma barreira intransponível. A confiança de Lázaro era frágil, corroída pela insegurança que o perseguia. Como eu queria dizer toda a verdade, mas ele não compreenderia, seria o fim… — Ponderava ela em pensamento.

O suor escorria-lhe pelo rosto, os passos trôpegos, uma escuridão no olhar. Sentou-se, trêmula, em um dos bancos da praça. Reúne forças para uma golfada de ar. Alheia ao ambiente, volta à noite da briga com Lázaro. Ela havia desabado em lágrimas. Os soluços, a sacudiam como ondas de uma tempestade em alto mar. Encolhida no canto do quarto. O som do choro gravando nas paredes. Suas mãos, trêmulas, cobriram o rosto. Um refúgio em suas próprias lembranças. Pela primeira vez, sentira medo de Lázaro, especialmente do jeito como ele a olhava. A chuva lá fora batia contra a janela como se a natureza compartilhasse da sua dor. Cada gota que escorria pelo vidro, levava a esperança que restava em seu coração. O único lugar, onde sempre encontrava conforto nos momentos de dor, era na lembrança de sua família. Mesmo essas memórias vinham com seu próprio fardo.

Lembrou-se do falecido pai, sempre tão ausente, emocionalmente, desde que a mãe tinha morrido. Ele tentara fazer o melhor, mas não sabia lidar com o peso da perda. A imagem de seu pai a envolveu como um manto protetor. Ela o via, cansado e coberto de graxa, mas com um sorriso que iluminava seus olhos. “Você pode ser o que quiser, Jasmine. Basta acreditar em si mesma“, suas palavras tão presentes agora. Ela foi transportada para uma tarde ensolarada, quando ele a levava para passear no parque. Era apenas uma criança, cheia de sonhos.
Com um sorriso ao rosto se via criança, segurando um microfone de brinquedo. “Então, senhor Carlos, como se sente ao terminar mais um dia de trabalho?” perguntou, imitando uma repórter. “Eu me sinto cansado, mas muito orgulhoso de você,” ele respondia, rindo. Mas logo sua expressão se tornou mais séria. “Só não se esqueça de seguir o seu coração.”
A imagem da mãe, pálida e frágil, a assombrava até hoje. O silêncio pesado daquela noite, o choro de sua irmã, Janaína, tudo parecia tão real. A perda da mãe havia sido um golpe devastador, e a figura do pai, forte e protetor, se tornou frágil e solitária.
Depois que a mãe se foi, nada mais parecia o mesmo. Jasmine tinha apenas seis anos, e tudo o que sobrou da presença materna foram fotos, roupas e aquele aroma delicado, que de vez em quando, ela pensava que ainda conseguia perceber no ar. Lembrava-se de tentar agarrar as últimas memórias dela, como se pudesse trazer a mãe de volta, mas o tempo não perdoava. A irmã, mais velha, havia sido o suporte que a sustentou por tantos anos. Ela era, quem a consolava nas noites em que o silêncio da casa, ficava insuportável. Porém, mesmo ela, acabara se afastando ao longo do tempo, formando sua própria família e deixando Jasmine, sozinha com as sombras do passado.
A dor da iminente perda de Lázaro se misturava ao luto não-resolvido de sua mãe. Ela nunca havia superado a perda, e agora, essa sensação de abandono retornava com força total. Parecia que, novamente, estava sendo abandonada, quando tudo que desejava era compreensão. A cada lágrima, a lembrança da mãe se fortalecia. Aqueles olhos amorosos, a voz suave que a acalmava, quando ela tinha medo do escuro. O abraço que fazia o mundo parecer um lugar seguro. Tudo isso agora parecia distante e inalcançável. Se ela estivesse aqui, o que diria? Pensou Jasmine, afundando o rosto entre as mãos brancas. Sua mãe tinha as palavras adequadas para consolá-la, para auxiliá-la a avançar, quando a vida se tornava um campo de conflito. Ela apertou os olhos, desejando que essa dor passasse. Mas sabia que, no fundo, algo tinha se quebrado, naquela noite, com Lázaro. E as rachaduras que agora surgiam, eram profundas demais para serem reparadas. O embate, entre o segredo e a perda, erguia seu paredão. A única coisa, que ela ouvia agora, era o som do seu coração, preso no peito. Era como se afundasse na areia movediça. Aqui estou, novamente, uma garotinha solitária! O que será daqui pra frente?

O clima alegre de fim de ano parecia aumentar o desconforto. Quando finalmente chegou ao restaurante, onde habitualmente fazia as refeições. Parou à entrada, olhando para a rua, os olhos fechados. Um balé de imagens… uma cena… lembra do sonho que lhe persegue desde menina

“… Eu, menina… pequena… cabelos de milho e olhos de mar. Parada à beira do rio, estreito… acidentado. O cheiro de mato… O canto dos pássaros… As águas escorrem… velozes… redemoinhos… O som… uma sinfonia desconhecida…acalenta meus ouvidos… eu danço… eu giro… bailando… vibrando. Estou aqui e na outra margem também… menina… pequena… cabelos de milho e olhos de mar. A pulseirinha no pulso… mamãe… uma parte que se reparte. Caminho… caminho para a outra margem… o encontro de mim… o rio se alargando…se alargando… a distância… sempre mais… Não vejo mais o outro lado… não me vejo mais. Ansiedade… frustração… Parte arrancada de mim…”

Até um tempo atrás, eu sonhava dormindo, mas de uns tempos para cá, sonho também acordada. Não entendo o significado…, Jasmine balança a cabeça.

O frio do ar-condicionado e o cheiro quente de comida, plasmavam seu espírito. Enquanto escolhia uma mesa, as perguntas continuavam a martelar em sua mente. Haverá ainda uma oportunidade para nós? Lázaro ainda seria capaz de confiar em mim novamente? Mal ela senta à mesa e o telefone toca. Chamada confidencial. Já estou indo, responde prontamente. Ela, suspende o pedido e sai com passos apressados. Olhou para o pulso e, sem tempo de voltar para pegar o carro, sinalizou para um táxi. Ela não retornou para a redação naquela tarde.

Capítulo XV – A Nova Vida

O elevador do Palace Hotel desce da cobertura. As portas de aço espelhado refletindo a minha imagem. Observa meu reflexo com um leve sorriso. Confiro a barba com dedos firmes, um gesto automático. No mostrador, os números se sucedem, lentamente. Ao sair do elevador, sou envolvido pela atmosfera luxuosa do hotel. O cheiro nobre de madeira e couro, se mistura ao perfume sutil das flores frescas. Inspiro fundo, como se estivesse saboreando cada momento. Na recepção, aceno, com a cabeça, para o porteiro e dirijo-me para a saída. O ar fresco da noite, traz consigo um leve arrepio. Olho para cima, para as estrelas que cintilam no céu noturno, como se estivesse buscando um sinal.
À sala, do meu novo apartamento, uma estante de livros, de madeira maciça, com um bom número de títulos, ainda por organizar. Ao lado, um sofá confortável e uma pequena mesa de centro, feita de madeira rústica. Nas paredes, quadros abstratos, pintados por um amigo artista, adicionavam um toque de cor e originalidade ao ambiente. A cozinha era pequena, com armários de madeira escura. Um quadro de azulejos coloridos, retratava uma cena bucólica. Uma pequena mesa de jantar e quatro cadeiras. O meu quarto, além dos outros dois, era um espaço simples. Além do banheiro privativo, uma cama de casal, um guarda-roupas e uma pequena cômoda, com mais livros e alguns objetos pessoais.
Era tarde e eu teria que estar em forma pela manhã. Joga-me na cama macia, os olhos se fecham. Suspiro profundamente, como se estivesse livre de um peso. O relógio de ouro, reluz, sobre a mesinha de cabeceira. Será esta a minha nova realidade? Eu o examino com atenção. Um sorriso nostálgico nos lábios. Veja só como a vida é… Os olhos fixos no teto, traço com o dedo um círculo imaginário, um mapa mental de minha jornada. Ontem naquele quarto miserável… hoje, um presente destes! É Lázaro, você não é mais aquele menino… pensei em voz alta. A imagem de Jasmine surge na mente, nítida e vívida. Meus olhos se fecham, sorrio de forma melancólica. Jasmine… Nada se compara à juventude e ao frescor de suas pétalas orvalhadas. O doce dos seus lábios carnosos. Desço a mão pelo rosto, como se tentasse apagar a lembrança. Mas a imagem persiste, mais forte do que nunca. Temos ainda muitas pendências, coisas não esclarecidas. O dinheiro… quem lhe paga?… o que ela faz para recebê-lo?… Mas não posso negar, sem ela eu não teria conseguido. Quer saber? Não importa. Ela vale o quanto vale. É uma parte, importante sim, mas apenas uma parte, de toda a trajetória. No seu lugar… ah! eu teria feito o mesmo! As cartas estão postas para que joguemos, e eu não vou perder este jogo! Vou dormir, amanhã tenho uma cobertura de arromba! Mas o apagar da luz, não silencia a mente indomável. Viro-me na cama, inquieto. Ao conciliar o sono, perpassa-me o sonho.

“…Eu, menino, no meio-fio… posto de gasolina… Barulho de pneus derrapando… impacto… Tudo virando de cabeça para baixo… corpo lançado aos ares… Vinte, trinta metros… A escuridão… O zumbido da máquina… respiração artificial. O quarto… hospital frio… antisséptico… Os olhos sonolentos… rosto da mãe… lágrimas… Sombras… cinco dias… “O escolhido por Deus… o renascido”… vozes na igreja… levado por frente… “Se você reviveu, foi por Deus. Você sempre deverá isto a ele.” Eu queria gritar, “isso não é milagre! É só mais peso para carregar”. Mas a voz estava presa…”

Acordo suado. Não sei onde estou. Não sei em que tempo estou. Aliás, nem se estou eu sei. Passo as mãos no rosto, coço os olhos. Choco-me contra as paredes. Acendo a luz.

Apertei as têmporas, tentando afastar a memória do atropelamento, aos oito anos. Mas a imagem de minha mãe persistia. Era um prego enferrujado, cravado dentro do meu peito, uma infecção generalizada. Quantas vezes a desejei morta…

A mãe, mãos erguidas na igreja, orava com fervor. Depois, o rosto transformado pelo ódio. Discussões e gritos, o pai saindo de casa com a mala na mão. Desci, aos doze anos, ao tanque batismal. Os pés vacilantes na água gelada, ouvindo: “Tu deves isto a Deus, amanhã pode ser tarde”. Livros abertos, páginas manchadas, lágrimas, cansaço. Pranteadas noites sobre folhas amareladas, rabiscadas, amassadas, perdidas no tempo. Mãos suadas. Tremores nas pernas. O estômago em convulsão. Medo. Xingamentos e ameaças, repetidas como um eco eterno: “Guri imprestável, tu nunca será nada na vida.” As marcas no meu braço magro, a carregar cestas de salgadinhos. Os ombros doloridos, da caixa de engraxate. A tensão. Eu precisava levar dinheiro para casa. As tampinhas de garrafa, os grãos de milho, sob meus joelhos… A carne… o osso… Eu, empunhava uma faca, cortava com raiva, o cinto de couro que me açoitava. O tempo apaga as cicatrizes da pele, mas as que ficam no fundo, no cerne, essas são eternas. “Tu não vale nada. Tu não foi parido, tu foi cagado. Igual ao teu pai. Tu nunca vai ser nada na vida.”

Visto o roupão e vou até a sacada. Preciso de uma coisa… Lembro, de Pedro Dantas ter esquecido, uma carteira de cigarros. Reviro as gavetas. Está aqui! Acendo e dou uma tragada. Fico olhando para a fumaça, seus caracóis… em espiral, as recordações… Cóf cóf cóf… merda, nem pra fumar… Apago. Entrego-me à brisa insinuante da madrugada. Bem depois, arrasto-me para a cama.

Capítulo XVI – Na Redação

Jasmine estava imersa em um mar de papéis. A fluorescência da luz do escritório, as olheiras profundas sob seus olhos. A redação era um caos com pilhas de jornais, revistas e documentos espalhados pelas mesas. O som das impressoras roncando e o tilintar dos telefones criavam uma atmosfera frenética. Na tela do seu computador, diversas abas se alternavam rapidamente, exibindo notícias em desenvolvimento, e-mails não lidos e planilhas complexas. Um grande mural de notícias cobria, uma das paredes, era a importância de estar sempre atualizada. Apesar do estresse, ela mantinha um sorriso gentil, uma postura determinada a enfrentar qualquer desafio. Desde que assumira a direção da redação, sua vida tinha se tornado numa correria. Os prazos do jornal, o pessoal, os chamados inesperados, tomavam todo o seu tempo, mas Jasmine não se queixava. Uma leve batida na porta interrompe o seu ritmo. Entre, murmurou ela, a voz baixa. Abri a porta e sorri ao entrar.

— Boa tarde, chefe! — eu disse, sorridente, o olhar iluminado, coloco os papéis sobre a mesa.

— Já disse que não gosto que me chamem de chefe. Ainda mais você – disse ela, ao fuzilar-me com o olhar, os lábios entreabertos, um sorriso desafiador. Os cabelos soltos, caindo sobre os ombros, realçando ainda mais a sua beleza nórdica.

— Calma, calma. Vim em paz. Venha cá com papai! – brinquei, rindo. Tomei suas mãos, trazendo-a para o meu lado.

O escritório em desordem, papéis espalhados pela mesa, indicando a urgência dos assuntos.

— Pára, aqui não – disse baixinho, toda frouxa vindo em sua direção, as faces coradas, os olhos baixos.

A ponho em meu colo, de lado, inalo do seu perfume, agora mais suave. Percorro seu corpo, com toques certeiros. Sinto, no dedo, o pequeno coração em alto relevo, às costas. O olhar atento, à boca levemente aberta. Sem resistência, ela fecha os olhos. Suspira. O beija. O peito pulsante. A respiração ofegante. Insinuo-me sob a saia marinho, entre as pernas entreabertas. Ela sente o toque atravessando o tecido fino… Estremece e segura meu rosto entre as mãos.

— Assim não dá amor… Cada vez que você vem me deixa assim, viu?… desequilibrada – diz ela, arfante, os lábios entreabertos, os seios inflados.

Jasmine, abruptamente levanta, contorna a mesa e senta-se. Junta as mãos em pirâmide, olha-me à altura do peito, fugindo ao meu olhar abrasivo.

A sala de reuniões, volta ao seu estado frio e impessoal. A luz do sol da tarde entra pela janela, criando sombras que dançam nas paredes. Ela volta à postura profissional.

— Quero parabenizá-lo pela premiação! Você é um ótimo profissional! E no jornalismo investigativo então, não há ninguém melhor – ela falou devagar, a voz firme, mas com um tremor quase imperceptível. Prende os cabelos em um coque elegante, revelando o pescoço.

— Ainda não sei o que dizer… – gaguejei, a cabeça baixa, atritando a fronte. Minhas mãos pressionando as pernas.

— Viu? Fique tranquilo. A ordem veio de cima. Afinal, eu não faria melhor do que você fez. Eu o amo e tudo o que mais quero, é que se saia muito bem em tudo. À noite estarei te esperando com o vinho! — Disse ela, estendendo-me a mão, em cumprimento. O sorriso forçado, os olhos opacos.

Eu sabia que a ordem para a transferência de pauta, de Jasmine para mim, partira de Sophia. Eu estava no seu gabinete, na presença do editor chefe, no dia da tomada de decisão. Essa pauta cairá melhor em Lázaro do que naquela sem-sal, disse Sophia. E eu, sequer defendi ou disse algo em favor de Jasmine. E pior, de certa forma, eu induzi Sophia a isso, ao pressentir seu interesse por mim. E Jasmine, por sua vez, logo percebeu um “Q” de conspiração nisso tudo. E não foi para menos, quando o fato veio à lume, provocou um alvoroço. E, no intuito de evitar uma queda de credibilidade interna, o presidente do grupo, pressionou Sophia, a promover Jasmine, para a chefia de redação. Fato este, que beneficiou também, o chefe anterior.

Meus olhos, desviam-se do olhar de Jasmine, buscam refúgio em outro ponto da sala. O sorriso nervoso. Jasmine, bateu as mãos sobre o tampão da mesa. Levantou-se, o corpo rígido como uma estátua. Acompanhou-me até a porta, e nos despedimos.

Passo em minha mesa, apanho os livros e sigo para o estacionamento. Ao aproximar-me da camionete, encontro Expedito.

— Boa tarde seu Lázaro! Teve uma festança pro sinhor, meus parabéns! — disse ele, sorrindo, com um cigarro de palha no canto da boca. Os olhos negros, a esclera amarelada.

— Obrigado Expedito! Não o vi por lá, mas pedi para convidá-lo — eu, o olhava direto, ao pegar sua mão. O peso do corpo sobre uma perna, os livros sob o braço.

— Agradecido seu Lázaro! Teve muita gente importante, sim sinhor. E o que faria este preto lá? — disse, ao tirar o boné de time, mostrando a cor da pele com o dedo. A camisa mal abotoada, a calça antiga de tergal, os chinelos.

Expedito lembra-me o Edmilson. Era o meu melhor amigo na escola. Sua família, muito pobre, era sempre tão amorosa com ele. Ele contava, que jogava futebol de várzea com seu pai, nos fins de semana. Quantas vezes desejei ser seu irmão. Eu invejava a sua felicidade, rememorei.

— Mas você é importante para nós, e um homem não deve ser medido pelas roupas ou pela cor da sua pele, né? — Eu disse, pondo a mão no ombro do homem, o sorriso franco.

— Sim sinhor, se vê por meu filho, João Carlos, esse é um preto poderoso! — falou cheio de orgulho, os olhos amarelados, o palheiro entre os dedos.

— É verdade! Somos amigos ele e eu! — abri a porta traseira da S-10 e atiro os livros. Volto-me para o homem, arrumando a cabeleira.

— Gosto muito do sinhor também! É o único que pára pra conversar. Presto atenção no sinhor, desde quando vinha só pra trazer dona Jasmine — uma leve nota de emoção em sua voz. O olhar sempre baixo, a mão apoiando o queixo.

— Trabalha há quanto tempo aqui Expedito? — perguntei a queima-roupa. Sento no banco do carro, as pernas pra fora. Observo os gestos tímidos daquele homem. Beirando os setenta anos, trazia ainda uma forte compleição física.

— Sim sinhor. Trabalho uns par de anos, acho que uns vinte, mais ou menos. O Gideão é um homem muito bom. O sinhor sabe, o Gideão é diferente do Guimarães Barreto que todo mundo conhece. Na verdade, a gente inté podia ser irmão, não fosse a minha cor — disse ele, tirando o cigarro da boca, dando uma cuspidela no chão. A mão na cintura.

— Nossa! Eu não sabia disso, não! Me conta, né? — disse mostrando-me interessado. Os olhos atentos. A mão sobre o volante, os lábios entreabertos.

— A história é antiga — Expedito baixa a cabeça até os pés, volta a levantar o olhar. Um silêncio de introdução. Mais uma tragada, a fumaça sobe preguiçosa. — Eu nasci e cresci na casa da família Barreto. O pai de Gideão, que Deus o tenha, tirou minha mãezinha, que Deus a guarde em um bom lugar, da escravidão ainda novinha. Daí ela ficou, como agregada na família, até morrer. Eu não conheci meu pai. Seu Barreto e sua esposa, também já falecida, cuidaram de nóis, como da família. Gideãozinho, veio três anos depois de mim, nóis dois brincava e se protegia sempre. Depois, quando homens, nos extraviamos por aí. Gideão sempre foi um rapaz bonito e muito inteligente, fez a vida dele, sim senhor. Eu, vaguei um eito por aí, até que Gideão me achou e me trouxe pra cá. Me deu casa, emprego e estudo pro João Carlos, até ele se formar. Depois ele veio trabalhar aqui, como adevogado dele. Ainda tenho a Doralice , esta, não gostou muito de estudar, como o irmão, mas trabalha na casa do Gideão. “Este é o teu negrinho, Gideão? Quanto pagou por ele?” Assim falavam os meninos, e Gideão respondia bravo: “quem você pensa que é pra falar assim do meu amigo?” Ele arrumava briga, e eu entrava e arresorvia com meu tamanhão! — Expedito sorria ao lembrar… Gideãozinho era como um irmão pra mim, eu inté engraxava os sapatos dele. E quando ele fazia arte em casa então, eu é que apanhava no seu lugar.

— Que história em Expedito! Fiquei curioso, vou querer saber mais — disse eu, pondo as pernas para dentro. Ligo o motor e aceno.

Enquanto isso, lá na UTI, imerso nas profundezas do inconsciente, Lázaro chama, grita, bate… não sabe aonde nem quando. Essas imagens desfilam, por trás de seus olhos…

“… Estou BATENDO sei que estou… um BAQUE mudo… silêncio… SILÊNCIO PESADO nas costas… Estou PRESO… tirem-me daqui… meus OLHOS úmidos… SONS… vozes ao derredor…da onde?… FORÇO forço mas não movo… sem COR… sem LUZ… sem TREVA… nada a nomear… Minha mãe MARIA MADALENA… sentada no BALANÇO… MENINA… Vestido floreado… pedra VERDE de olhos… CÉUS de olhos… TEMPESTADE VERMELHA passa… nada fica… NADA pego… falo sem ouvidos sem VOZ… um TÚMULO será?… O PARAÍSO?… INFERNO… aqui posso ver… sem VER… Ele me atira… MORTO no asfalto… GUIMARÃES… HZ… corro… não chego… PAPAI o bigode… VESTIDO volta ao mundo… FILEIRAS DE REZA… os véus… o chôro… MENINO dor nos BRAÇOS… dói os ombros… olhos CHORAM… coração ACORRENTADO… suspiroooooo… JUIZ… BOTINAÇO… sirene… YOSEF… de branco… JACOB na sala… Duas meninas… LÉAH… DANTAS… campus… ANA… O pescoço aperta… QUEIMA o peito. Ergo o braço não levanta… MEUS PASSOS SEM PASSOS… apitos… AGULHAS… vejo alguém… minha boca não abre… VOZ SURDA… empurro OLHEM pra mim… aqui estou… nunca TÃO SÓ… cadeias… PULSOS… por onde VOLTAR?… sobrevoar… MERGULHO…”

Capítulo XVII – Os Autógrafos

Já passavam das onze da noite, a Livraria Cultura Brasil estava lotada. Homens e mulheres, elegantemente vestidos, reuniam-se em pequenos grupos. As estantes de madeira escura, iam até o teto. Milhares de volumes coloridos contavam, cada um a sua própria história. O cheiro de papel e tinta. A mistura das fragrâncias dos corpos. Os canapés decorados, o champanhe gelado, o vinho nas taças. Tudo ali prenunciava uma noite solene. Cabos pretos emborrachados, desciam do alto até o chão, num círculo âmbar de luz. Ao centro, eu impunhando, à mão direita, o meu livro. Assim, como quem segura um amuleto. O Caminho de Volta, meu símbolo de vitória. As mãos e as pernas tremiam. Meu olhar solto contra o amontoado de pessoas.

— Obrigado a todos por estarem aqui — olho a multidão. Meu rosto rubro — este livro, significa para mim, muito mais do que o mero relato de uma vida. Ele é, antes, o encerramento do velho, inaugurando o novo! — pronuncio, a cabeça erguida, olhos longos, os braços lentos. — Cercado aqui, de amigos e simpatizantes, a certeza e a dúvida lutam pelo mesmo porvir. Eu, despido e confesso, diante de todos, dividindo minhas venturas e desventuras.

Jasmine, veio até a mim. Os olhos brilhantes, a boca entreaberta, sussurrou-me ao ouvido: “Noites em claro, sonhos compartilhados, desafios superados. A verdade é, os ventos sempre sopram, mas nunca sabemos muito bem para onde…” Em seu olhar, capturo uma lágrima retida no azul.

Do outro lado do salão, Sophia de Albuquerque Guimarães Barreto, olhava por cima. A música bem ao fundo. A luz em meia fase. Nos lábios, uma brisa. Os dedos úmidos, a taça morna. Em seu vestido vermelho, um retrato de formas abundantes. Aquele doce olhar, de quem oculta uma espada. Bamboleando suas curvas, sedutoramente, ela se aproxima. Depositou à mesa, o seu exemplar para o autógrafo. Trazia a seguinte dedicatória: “Ainda vejo-me naquela tarde, na redação, quando o seu olhar tocou o meu, e o mundo ao redor desapareceu.”

A cumprimentei, tão formalmente quanto podia, e nossos olhos se abraçaram!

— Lázaro, você está incrível! — Ela, põe a mão no meu braço, um toque suave. Um olhar de raio.

— Obrigado, Sophia. Fico feliz que tenha gostado, né? — Respondo, de maneira quase natural. A voz, um pouco falha. Volto os olhos para o livro, na dedicatória.

Ela, move-se lenta e calculadamente. Desce as mãos pela cintura. Uma displiscência ensaida. Os cabelos louros, caindo em cascata sobre os ombros.

— Eu sempre soube que você é um homem especial — inclina-se levemente, as pernas unidas. A respiração no meu rosto — é um prazer, ver você brilhar assim. — Ela sorri. A ponta da língua, percorrendo os lábios.

Levanto-me, a olho e agradeço. Não podia negar, é uma mulher deslumbrante. Já havia notado, pelos corredores do jornal, os seus olhares furtivos. Por duas vezes, eu fora chamado ao seu escritório, por motivos banais. Na terceira vez, foi para combinar a transferência da pauta, de Jasmine para mim. Eu sabia, que concordar o ato, seria um golpe contra Jasmine, mas não demostrei qualquer discordância ou desconforto. Graças a isso, tornara-me em um jornalista premiado, numa carreira ainda tão curta. Bem, agora ela estava ali, diante de mim e, como o Diabo, cobrava minha alma.

Jasmine, em pé, de longe olha para nós. Comprime os dentes sobre o lábio. O vinho balançando na taça. O seu olhar é uma flecha. Ela franze a testa e, devagar, como bicho à hora do bote, aproxima-se. Sorri para Sophia, e põe a mão no meu braço.

— Olá, Sophia! — Jasmine intervém. A voz firme e uma cordialidade forçada — que momento incrível, não é? — Leva-me de braços. Um riso de canto de boca, endereçado a Sophia.

A atmosfera se eletrifica. Sophia se afasta. A cabeça erguida. Os olhos faiscantes. Morde o lábio inferior.

— Meus parabéns, amigo! Que noite grandiosa! — disse Guimarães Barreto, estendendo a mão para Lázaro — seu livro é muito bom! Admiro a sua coragem! — A mão no bolso. O olhar direto. Os gestos lentos.

— Muito obrigado doutor! Sinto-me honrado, vindo de sua parte! — desci o olhar depara ele. Apoiei o corpo sobre uma das pernas, parecendo mais baixo.

— Não sei… … … — , o dedo no ar — não sei se te fará bem tanta exposição assim — a mão no meu braço, levando-me para um lugar mais reservado.

— É impossível sair na chuva, sem se molhar, né? — disse eu, acertando o nó da gravata. Um sorriso meia boca.

— Veja bem, para um escritor, já acho muito arriscado fazer o que você fez, mas para um jornalista, a ideia é estapafúrdia — disse, em tom de aconselhamento. Desabotou o paletó, pondo-se mais à vontade no terno italiano.

— Eu não vejo por esse ângulo — discordei, apoiando a palma da mão, em uma das estantes. Cocei a testa. Fitando a fronte de Guimarães.

— Talvez, por você não ser um grande empresário, e não ter a responsabilidade por milhares de pessoas, diretamente dependentes dos seus resultados — falou com altivez, como quem diz: Vamos, mostre a cara, quero ver do você é feito.

Agora, o olhando de cima, pensei: Eu é que não vou ficar aqui calado, enquanto ele me esbofeteia com sua arrogância, né?

— Doutor, seja direto. Onde é que essa conversa irá nos levar? — coloquei as mãos nos bolsos, olhei para o teto rapidamente e voltei a encará-lo.

— Veja bem, mais direto é impossível. Você é só mais um, entre os meus milhares de funcionários. E, sinceramente, este livro não te trará a credibilidade necessária a um jornalista. — disse ele, sério. As sobrancelhas em “S”. A testa enrugada.

— Me desculpe, mas o senhor está com a visão turva. Está olhando o hoje, com os olhos do ontem — disse eu, intencionalmente, espremendo a ferida com as unhas. Meus olhos dilatados.

— A opinião pública, não mudou e não mudará. A ciência sim e a tecnologia sim, essas mudam. Os homens, intimamente, jamais mudarão — disse ele, com a voz alterada. Engrossando veia do pescoço.

— A credibilidade de um jornalista, do seu tempo, era conseguida graças à ocultação de suas falhas. Ele poderia, noticiar o mal feito dos outros, mas jamais os seus, né? — passei a mão na testa. Tirei o paletó. Os lábios secos. .

— Sempre foi assim. Veja bem, uma coisa é o homem comum, outra, é o profissional de imprensa. Senão pode ser correto, que pelo menos saiba esconder. Isto chama-se, respeito pela categoria — a saliva esbranquiçada nos lábios, o dedo em riste.

— Pois é doutor, essa hipocrisia toda, está com seus dias contados. O senhor deve saber, como empresário da comunicação, que a informação, a cada dia se torna mais livre e instantânea. Todo o lixo, outrora empurrado para debaixo do tapete, está vindo à superfície e à luz. — Disse eu, colocando-me cara a cara com ele.

— Então, você deve esconder melhor os seus pontos fracos, expor-se menos é a ordem — o rosto vermelho, arrumando a camisa para dentro das calças.

— O espectador de hoje, já não é tão ingênuo, a ponto de santificar alguém, seja ele um padre, um juiz ou mesmo um jornalista. A premissa atual é a de que, se você não for honesto o bastante, para falar de si mesmo, como irá falar do outro?

— Veja bem. Você está sugerindo que devemos todos chafurdar no mesmo lamaçal? — indagou, firmando os olhos apertados contra mim.

— Tenha dó. Agora o senhor está sendo muito simplista. Não desça a tal ponto. É lógico que, o homem, seja qual for a profissão que ele exerça, deve sempre buscar o bem e o belo. Mas, em errando, e todos erramos, e ainda erraremos muito nesta busca, então deverá ele admití-lo e confessá-lo.

— E quando esse confesso, reconquistará o perdão e a credibilidade necessária? — Indagou ele. A sobrancelha erguida. Os braços abertos.

— Depende do valor atribuído, ao mal por ele praticado, né? O perdão ou o castigo, será arbitrado pelo público. Sob essa ótica, o seu jornalismo é tacanho, seu Guimarães — sorri de canto de boca, correndo os dedos pela barba.

— Ora, ora. O que você está dizendo… Você precisa se ouvir melhor — disse o empresário, num sorriso irônico — Quem você pensa que é? Sujeito topetudo… acha que pode vir e me ensinar a fazer o meu trabalho? Olha o império que construí numa vida… eram apenas alguns terrenos, uma dúzia de casas e apartamentos. E olhe aí, o império Guimarães Barreto — disse ele, os braços abertos, expansivos.

A senhora Guimarães Barreto, passa ao largo do marido. Ele a chama, pela segunda vez. Ela havia passado à nossa frente, e não nos notou, se é que isso fosse possível. Ela aproxima-se. Guimarães Barreto apresenta-me à sua mulher.

— Encantado senhora — pego em sua mão. Um frio na boca do estômago. As mãos suando. As pernas tremem levemente. Desviamos o olhar. Ela sai de cabeça baixa, ajeitando os cabelos.

Ouço uma cálida voz às minhas costas. Volto-me, e o que vejo expande-me o olhar.

— Olha, estou estupefata com a sua obra! Li duas vezes o seu livro! Ficou muito bom! A forma como conseguiu expressar as suas emoções mais profundas… foi uma catarse! — Disse, doutora Martina, empolgada. A sua mão abraçada à minha, úmida e fria. Ela trazia nos lábios, um riso doce e ponderado.

— Você conhece minha história — disse-lhe, acertando a gravata. Mergulho em seus olhos marejados. O aroma de flores no ar.

— Mas aqui você se desnuda. Pude conhecê-lo ainda mais, sob uma nova ótica. Você é especial Lázaro! Eu não sei… … … — um olhar silente . Ela segura a esmeralda do colar.

— Jasmine também contribuiu, à maneira dela. Mas Pedro Dantas e você foram primordiais. Sem vocês, isto nunca teria sido impresso em papel — eu falava, com as mãos sobre as dela. Meus olhos, detidos no arfar dos seios.

Perdi-me a olhar para Martina, seus lábios entreabertos. Então, avanço às memórias das nossas sessões na clínica.
Em psicologia, diferimos o viver do estar vivo. Estar vivo é biológico; viver é uma experiência de profundidade. É encontrar propósito, significado. Você já se perguntou sobre o que faz seus dias valerem a pena?” Eu balançava a cabeça, lembrando-me das noites em claro, das memórias de minha infância perdida e das palavras cruéis de minha mãe… Seus olhos sempre fixos em mim. Um gesto gentil com a mão, como se ela quisesse afugentar a tempestade interna que eu enfrentava. “E essa voz é poderosa, não é Lázaro?” Seus olhos me penetravam… “Mas olha, você não precisa permitir que ela dite suas ações ou sua autoimagem.” Ela, estranhamente me sentia, não sei como, mas me sentia como se estivesse em mim… O menear de cabeça… o desgosto correndo em minhas veias. Eu me contorcia. Olhava para o chão, os punhos cerrados, as unhas quase se cravando na palma da mão. “Suas lembranças são dolorosas, eu sei. Mas essas palavras não definem quem você é. Elas são ecos de um passado que você pode reescrever. Não se trata de esquecer, mas de entender. Cada um desses episódios fez parte de sua jornada, mas não precisa ser sua identidade. Você sobreviveu a tudo, e isso, já é uma vitória.” Ela sentia que eu, ainda que a duras penas, buscava reescrever, a cada dia, a minha própria e nova história.

Jasmine, estava linda num vestido lilás, tomara-que-caia. Lá vinha ela, os dentes superiores sobre o lábio. Munida, para afugentar qualquer mulher, que prolongasse o olhar, ou se demorasse no aperto de mão. Eu lhe pertencia. Um sorriso sem graça, os sobrecenhos erguidos. Um engate no braço. Este era o recado.

— E aí meu velho! — Disse de longe, Pedro Dantas. “Salvo pelo gongo”, pensei.

— Você é espetacular meu amigo! Quem poderia organizar melhor do que você, uma sessão de autógrafos deste quilate, né? — Eu o abracei, a cabeça de Pedro presa junto ao meu peito. Um sorriso amplo.

— Você, é a salvação da minha lavoura, velho! É só aguardar pra essa semana, os pedidos — o olhar sonhador. Algo de infantil no seu sorriso. — A editora agora bomba! Meu velho pai, em seu pijama de bichinhos, ficará orgulhoso! — Disse ele, imitando o modo do pai arrastar os chinelos.

— Que nada. Acabei de dizer à Martina, o quanto vocês foram importantes nesse processo. Principalmente um cara chato, conhecido por Pedro Dantas — disse, rindo. Revirando os cabelos engomados dele.

— E falando em Martina… — mostrou-me com o queixo — lá está a tigresa afiando as unhas. E adivinha, para quem ela está olhando? E não é de agora — colocou a mão às minhas costas , fazendo com que eu virasse para ela — quando será, hein? — Disse, sussurrando, na ponta dos pés.

— Ah! Doutora Martina! Ai se ela me desse bola! Mas ela tá é na sua. Só você ainda não percebeu. Aliás é tudo pra você, meu velho! Me dá um pouco desse açúcar… — roçou o braço contra o meu — você é pegajoso — riu-se ele — Já contei três aqui. Fora a Jasmine, é claro. Isso me dá até nojo — disse, um olhar estranhado, perpendicular.

Olhando para Pedro Dantas, volto ao nosso tempo de faculdade…
Você tem que reescrever e publicar esse livro, Lázaro.” Que nada, escrevo para eu ler, só isso, né? “Mas qual é a graça de escrever para si? Então nem escreva, já está tudo aí mesmo. Velho você tem tudo.” Pára Pedro, quem tem tudo é você. “O que eu tenho foi-me dado. Já você, tem tudo aí dentro. Eu nunca me preocupei com nada, meu pai era o provedor. Sempre tive acesso aos melhores livros e colégios. Ainda menino, frequentava cursos de inglês, francês, alemão, informática e o escambau… E o que eu faria com tudo isso, caso não recebesse a editora, de mãos beijadas, do meu pai?”

Entre todos os presentes também estavam Jacob, Salomão e Matias. Matias…

— Meu lindo! Nossa… você está de parabéns! Confesso que chorei lendo este livro — disse ele, mostrando o exemplar que levava consigo — pude identificar várias das personalidades, aqui ocultas, sob pseudônimos, inclusive a minha. Você é muito bom! Sabe trabalhar com as palavras! — Os olhos úmidos, a palavra cortada e pastosa. No peito, o correntão de ouro, entre a camiseta de marca e o blazer importado.

— Muito obrigado meu amigo! Que bom! Não achei que fosse impactá-lo a tal ponto, né? — Disse eu, de frente, segurando seus ombros. O sorriso aberto, olhos nos olhos.

— E aí meu lindo… parece que as coisas estão melhorando, não é? Está morando bem, um carrão… e olha este relógio então! — falou segurando meu pulso. Esticando o beiço, saboreando a mudança.

— É, não posso negar, estão sim — assenti com a cabeça — devo muito a você, meu amigo — olhei para o Rolex, lembrei da sua origem. “Você me devolveu a vontade de viver… ao seu lado sinto-me viva!”

— Ainda assim, você não me parece muito empolgado. Você é homem para mais, muito mais. Eu o conheço, e não é de hoje. Você está certo, vá em busca daquilo que lhe pertence por direito. Tome de assalto.

— É, mas não é bem assim que eu quero conseguir… não desta maneira — girei a cabeça devagar. As mãos nos bolsos.

— Ei, acorda meu lindo. Você não faz a mínima ideia da onde eu vim. É isso, o lugar da onde viemos, já congelou no tempo, mas para onde iremos é o que importa. O sinal sempre esteve fechado pra nós. Aonde chegaremos pelas vias socialmente aceitas? Seremos para sempre serviçais de todos. O sistema estabelecido implementa, a cada dia mais dispositivos de controle à nossa ascenção. Olhe a sua volta, seus pais, os meus, nossos avós, os vizinhos. Quais deles foram bem sucedidos na vida? E é porque eles não se esforçaram o suficiente? Não, eles deram o próprio sangue na construção de tudo que aí está. Desde a nossa mais tenra infância, a sociedade vem nos apontando um caminho. Mas este caminho, é justamente aquele que não nos levará a lugar nenhum. Mire esses ricaços que aqui estão, todos pousando de bons homens, raramente você encontrará um que não tomou o céu de assalto. — Matias, o pescoço vermelho, desabafava ao manter a mão sobre o meu braço. Os olhos injetados. As pernas abertas.

— É difícil de admitir, mas tenho que concordar com você, pelo menos em tese — meneei a cabeça. Olhando para o chão. Degustando cada palavra.

— E essa é a tese. O que é uma tese, se não enunciados a transformarem a realidade em aberração? — o sobrecenho direito suspenso. O olhar incógnito. A mão na cintura — não subestime a minha experiência. Sem você sequer desconfiar, eu sou o cara que mais te apoiei, desde o princípio — ao falar isso, beijou minha mão. Deu um tapinha nas minhas costas, e desapareceu entre as pessoas. Fiquei ali, com uma interrogação,em negrito, na testa.

Enquanto ele caminhava, apressado, para a rua, eu o observava. Lembrei, de tudo o que me confidenciara, sobre o seu passado. Matias, aos quinze anos, fora expulso de casa, pela mãe e seus quatro irmãos. A única que o defendeu, foi sua irmã, com vinte anos na época. Mas ela era a minoria, era também a ponta fraca, uma garota de programa. O pai, apesar de ter sido o primeiro homem de Matias, e isso desde os dez anos de idade, não o defendeu, simplesmente evadiu-se da casa e nunca mais retornou. “Oi lindo! O que vai ser hoje? Eu não tenho local próprio, podemos fazer no carro mesmo. Você vai ficar louco! Quanto? Nada que cinquentinha não possa pagar… Você hein lindo? Vinte pila pra por a boca nessa coisa?” Tempos depois… “Eu danço, dublo, faço a drag queen, o que você precisar. Mas me contrate. Pra mim, chega das ruas.” Daí surgiu Samantha. Linda, sensual e perigosa… “Você cortou meu rosto… essa navalha… Isso é só uma marca, a prova do que eu posso fazer com esse rostinho. E que tal aqui na sua boneca caída de satisfação? Pára por favor! O que tá acontecendo Samanthinha?Samanthinha é a puta da tua mulher. Como ela reagirá ao assistir esse vídeo? Ouça o que o maridinho dela declara a um traveco… O que é que você quer? O que eu quero? Há quanto tempo eu faço a fêmea pra fora e o teu macho pra dentro? Isso não tem preço!” Então, esse cliente, me presenteou com um pequeno prédio, num enorme terreno. O castelinho, até então denominado Planeta Criança, encerra suas atividades. Depois de um ano, algumas reformas e muito trabalho, desponta a Paradisus, a minha boate cinco estrelas.”

Quando eu menos esperava, os olhares de Sophia se encontravam com os meus. Ela, com a sua beleza e charme hipnotizante, e eu, com a minha ambição torturante. Tudo tomava corpo dentro de mim. As palavras de minha mãe, o menosprezo, a vida limitada, as humilhações… Aquela mulher, Sophia de Albuquerque Guimarães Barreto, diretora do Jornal Hora Zero, filha do presidente das Organizações Guimarães Barreto, simbolizava o sucesso e a ascensão social que eu tanto carecia e buscava.

Jasmine, parecia sentir a tensão no ar. Ela mantinha-se forte, afinal, nossas história se perpassavam. Alguns convidados observavam a troca de farpas, a eletricidade entre as duas mulheres. Sophia, sem perder a compostura, respondia com um olhar desafiador. Seus lábios, curvando-se em um sorriso, não escondia a rivalidade. Guimarães Barreto, rodeado por bajuladores e puxa-sacos, lá do seu canto, ria-se ao ver o empenho da filha, na conquista de seu mais novo “brinquedinho”.

Nas entrevistas pré lançamento, fui claro e honesto ao declarar: “Não me preocupo com o que possam dizer do livro. Na vida, não sou livre, na literatura, o sou. Na vida, tenho que ser bom, na literatura, ela tem que ser boa. Não escrevo para ninguém, escrevo para a minha satisfação, e por essa razão, faço o meu melhor, pois não sou nada fácil de agradar.”

Pedro Dantas e seu pessoal, foram buscar mais livros na editora. O lote inicial esgotou. O fato é que o grande Guimarães Barreto está aqui, em pessoa. E onde ele está, todos estão. A cobertura jornalística do evento, foi digna de um presidenciável.

Parece que tudo está dando muito certo para Lázaro, mas o problema é justamente esse, quando tudo só parece…

Capítulo XVIII – Guimarães Barreto

Gideão Guimarães Barreto, veio de uma família tradicional, porém falida e decadente. Se foram necessárias, muitas gerações de Guimarães Barreto, para fazer fortuna, baseada no trabalho escravo, bastou seu pai, para dilapidar o patrimônio. Seu Barreto, como era conhecido, não teve escravos, pelo menos, assim dizia ele, o que lhe servia de pretexto, para a sua fraqueza e incompetência.
Ao completar os dez anos de idade, Gideão, diante das limitações crescentes, sofridas pela família, via a tudo, como um ato da previdência econômica de seu pai. Aos
Dezessete, compreendeu enfim, a realidade: eles estavam falidos. O pai, consumido pelo alcoolismo e a jogatina, com o passar do tempo, tornava ainda mais difícil a convivência em família. Dono de um gênio irascível, tratava a todos, em especial as mulheres, com intolerância e autoritarismo. Gideão, testemunhava a tudo, sentindo na pele, as suas consequências. A casa dos Guimarães Barreto, outrora ponto de referência na sociedade, reduto de grandes festas e reuniões, dia a dia ia se esvaziando, relegada ao ostracismo social.
Aos dezoito anos, o rapaz, educado, bonito, inteligente, de bons modos, portador de um nome pomposo e tradicional, não demorou muito a se destacar entre as moças “casadoiras”. Gideão, foi apresentado à família Albuquerque, à qual passou a frequentador assíduo. E como era de se esperar, foi-lhe concedida à corte, a mão de Ana, uma bela e destacada moça de dezesseis anos.
Ana de Albuquerque, foi criada em uma família patriarcal e abastada, de quatro pessoas. Ada, sua irmã mais velha, nasceu portadora de deficiência física congênita. Seu pai fora morto durante um assalto, e o fato, acabou por precipitar o casamento de Ana, com o jovem Guimarães Barreto. A quarenta anos atrás, uma viúva, uma deficiente e uma adolescente, não tinham como administrar sozinhas, os bens da família. A morte de papai, foi inesperada e abrupta. Ele saiu no Jeep, a relíquia que amava dirigir, e em menos de uma hora, toca o telefone: ele tinha partido, sem nem um adeus. Ficamos as três, pranteando por dias, a olhar uma para a outra. Gideão foi o nosso anjo de guarda. Tratou de tudo, desde o funeral até o andamento dos negócios. Ele nunca nos deixou faltar nada. Morávamos todos juntos, até que, três anos depois, mamãe uniu-se ao papai.
Gideão, desde jovem, mostra-se um homem prático e objetivo. Sem meias palavras, sabe onde melhor golpear. O tipo que desconhece a tudo, o que não seja a sua própria vontade. Prova disso, é o Grupo Guimarães Barreto, líder no ramo das comunicações, com uma estupenda cadeia, de canais de televisão, emissoras de rádio, revistas e jornais espalhados pelo país. E não pára por aí, o grupo se ramifica por mercados diversificados, exercendo uma forte presença indústrial e comercial. O que o levou, à confortável posição de poder, político e econômico.
Sophia, entrou na família Guimarães Barreto, por adoção, em seu primeiro ano de idade. Ela, teve tudo o que o dinheiro pode comprar, inclusive muitas babás ou, nesse caso,
mães substitutas. Sempre muito mimada, tudo era possível, tudo era dela. Não havia limites. Até a puberdade, foi chorona e sapateadora. Era assim que melhor impunha, a sua vontade. Desde então, conforme fora crescendo, os seus mais caprichosos desejos, tornavam-se, inquestionavelmente, numa ordem. Fosse o que fosse, imediatamente lhe seria concedido. Não quero mais a bá Maria, tem o nariz, tipo, muito grande. Demita a Teresa, é uma gorda balofa. Ponham a Doralice na limpeza, não quero essa negra por perto. Papai, arrume outro lugar para o Expedito, não quero aquele negro aqui, me olhando esquisito.E aquele seu namorado, filha?” Perguntava sua mãe. Ah! Depois daquele já se passaram três! eles só existem para me divertir, tipo, depois, nem suas ligações eu atendo.
“Personalidade forte”, diziam os pais. Depois, Quando formada em jornalismo, o pai a nomeia diretora do HZ, jornal Hora Zero.
Quanto a Guimarães Barreto e a Lázaro Luiz Conde, uma relação de amor e ódio, ia se instalando. O presidente, veio a conhecê-lo, pessoalmente, durante a cerimônia de premiação jornalística, na qual, Lázaro fora premiado. Ali, pouco se falaram, tudo se resumiu a homenagens e cumprimentos. Até então, o que sabia a seu respeito, era por relatórios setoriais. Inclusive um destes, dava conta, da manobra efetivada por Sophia, contrariando o parecer da editoria, na mudança de pauta de Jasmine, para Lázaro. Um “incêndio”, que o próprio Guimarães, teve que apagar, promovendo, a prejudicada, à chefia de redação. Jasmine, funcionária exemplar e competente, e mais velha de casa, havia de ser compensada. Guimarães Barreto, sabe do valor dos seus recursos humanos, e da credibilidade interna necessária, aos bons resultados externos. Na ocasião do lançamento do livro, Caminho de Volta, o que mais lhe impressionou no jovem escritor, foi a semelhança entre ambos. Assim como ele, Lázaro mostrou força, determinação, coragem e muita ambição, e nisto, eram muito parecidos. Um potencial ainda não explorado, uma pedra bruta, pensou ele. Por outro lado, isso o preocupava, Lázaro era seu espelho. Ele poderia vir a ser um ótimo aliado, se aos meus interesses alinhado. O que duvido, com suas qualidades naturais, é bem provável que vá em busca de sua própria luz, e à sua maneira. A esses homens não lhes serve a coadjuvância, eles não seguem trilhos e não se deixam ofuscar, pensou Guimarães Barreto. Gideão, apesar da constante insônia, insistia em não tomar seus soníferos, o que, segundo ele, estava lhe causando dependência.

Ele permanecia deitado, em sua suíte privativa, que diga-se de passagem, muito maior do que a maiorias das residências, de famílias inteiras, pelo mundo, a olhar para o lustre de cristal, com armação em ouro. Ao refletir sobre Lázaro, ele é tomado pelo ressentimento, de nunca ter tido um filho homem. Filho nenhum aliás, não fosse a adoção de Sophia. Ana e essa mania de não estragar o corpo, de manter-se sempre linda e jovem, morrerá engolfada na vaidade e em suas futilidades. Mas eu fui o responsável, a tornei, nesta alienada que aí está. Desde meu pai, nunca atribuí outras funções à mulher, além da domesticidade e da sensualidade. Ela, por sua vez, bem como sua mãe, fora mantida às margens dos negócios “de homens”. Após o casamento, simplesmente dei continuidade à prática. Para quê eu ia querer uma mulher, logo uma mulher, metida em meus negócios? Ela não precisa saber, o que tem agora, tampouco, o que tinha à época. Eu sempre lhe dei do bom e do melhor, e isto basta.

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Luiz Carlos Bucalon, nasceu em 12 de março de 1964, na cidade de Maringá-Pr. Em 1980, lançou, em edição independente, o seu primeiro livro de poemas, "Câncer Amigo". Seguiu escrevendo poemas, crônicas, contos, ensaios, teatro, humor, biobibliografias e romance. Foram trinta e quatro títulos publicados, pelo então poeta marginal -- contemporâneo a Paulo Leminnski e outros expoentes. Bucalon, além de escritor e editor, foi também declamador, palestrante e divulgador de sua própria obra, de cidade em cidade, no Brasil e na Argentina. Seu mais recente livro, "Só Dói Quando Respiro", de poemas, é de 2021, publicado digitalmente em formato e-book. Obras (muitas também em espanhol) - Poemas: Câncer Amigo, A Palavra é um Ser Vivo, A Corsária e o Vento Santo, Roda Viva, Madá Madalena, Novas Asas, Um Lapso no Tempo, Uma que não vejo, Outra que não toco, Poema a Quatro Mãos (com Nice Vasconcelos), Escrever é coisa de louco, Bailarina Madrugada, Poeta de Ruas e Bares, Poemarte, Na Barra de Santos, Era eu naquele quadro, A Rosa e o Espinho, Dia Noite e Chuva Por onde Andaluzia, Poeta Cigano, Rodoviárias São Corredores, A poesia diz rimada, Poesia Presa no Espelho, Poema se faz ao poemar Poesia líquida é música. - Romance, conto, teatro, ensaio, crônica: Em Busca do Amor, Lânguida e Felina, O Globalicídio Brasileiro, A Semente do Milagre, Mártires da Imortalidade, A vida entre outras coisas, A Praça da República, O Banco da Praça, Ali Naquele Bar. Saiba na página Home.

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