Narrativa de ficção

Já não tenho palavras

Conto realista – prosa

Meus pés são inchados, feridos e partidos são meus pés, mas ainda assim e não obstante a tudo sempre caminho pelo mesmo caminho até que um dia, de tanto caminhar, me vi caminho.

Nada mais a dizer. Não há o que dizer. Solto tantas palavras ao vento que feito pássaros diáfanos nunca mais retornam sem novas plumas, novas cores. A palavra sai fácil, mas nunca retorna vazia. A palavra como o pensamento, é um bicho arredio e incapturável, ela sempre cumpre o seu mistér. A palavra nunca é irresponsável, irresponsável pode ser o seu emissor que inconsequentemente a libera e a envia mas ela, a palavra, implacavelmente cumprirá a missão para a qual foi gerada.

Eu deveria ser mais rápido na compreensão e muito mais lento na pronunciação. Uma vez proferida a palavra, esta jamais será recolhida nem alcançada sem que a mesma se cumpra, seja lá qual for a sua origem. A palavra é um ser vivo e tanto mais consciente será ela quanto for o grau de consciência daquele que a pronuncia. Nenhum coletor de pérolas as atira ao léu inconsequentemente, pois bem, palavras são pérolas. Palavras também podem ser punhais afiados, espadas de dois gumes, tanto para a edificação quanto para a mortificação. A palavra assim como uma faca, pode descascar batatas para o alimento como pode também ferir para o sofrimento. Já escrevi muito, já falei mais ainda, mas em toda a minha vida pensei muito pouco ou quase nada. De onde me saem as palavras? Da raiva? Do medo? Do amor? Da ignorância? Ou do condicionamento repetitivo alheio? Quantas palavras que me saíram eram originalmente minhas? Quantas foram as sentenças proferidas sem razão nem porquê? Quantas palavras perdidas em sua inocuidade atraídas pelo vazio de sentido? Quanto mais eu falo maior é e será a minha propensão ao erro. Calo-me ou transbordarei cálice.

Então saio a caminhar e o caminho vai se desenrolando sob meus passos. Tem pedras no caminho, tem areia, tem terra e tem ossos no caminho. Tropeços e deslizamentos, no caminho há cansaço e pés de aço. Meus pés são inchados, feridos e partidos são meus pés, mas ainda assim e não obstante a tudo sempre caminho pelo mesmo caminho até que um dia, de tanto caminhar, me vi caminho.

Saí de viagem, pronto, embrulhado para viagem. Sacolas no ombro a bagagem e um peito transbordante de coragem. Na rodoviária, rodoviárias são sempre corredores pra algum lugar, onde faminta por aventuras minha alma pede passagem. Fito o painel com tantos destinos, qualquer um serve pra quem não sabe ao certo pra onde ir. Pergunto o preço para o moço vestido de apreço, ele contabiliza valores e eu experimento sabores. Consulto a carteira e aponto a cidade, ele circula o horário e a plataforma de embarque. Tudo é novidade, respiro fundo, estou nascendo outra vez. Olho pro relógio ao alto e o ponteiro salta preguiçoso. Observo as pessoas todas ensimesmadas, umas com pressa de alegria, outras de aflição e ainda outras tanto faz. Passa um pedinte e alí à frente uma loja de doces, uma lanchonete e um bazar de pequenas lembranças. Lá vai um guarda desprotegido de mãos às costas e passos lentos, ele olha as horas em seu pulso. Fico imaginando se ele pensa na mulher, nos filhos em sua casa, “só mais duas rondas e vou-me embora”. E a voz aveludada da locutora: “Atenção passageiros com destino a algum lugar …”. E eu na ala 9, portão 3, ônibus 1213, poltrona 21, às 12 horas. Na minha frente uma mulher sisuda, atrás de mim um Índio feliz, mostro o bilhete, o documento e um sorriso. Peito inflado, olhar iluminado procuro o assento, bem ali ao lado daquele homem grande. Ele nada diz, vira o nariz e sai a roncar. Estou feliz eu gosto de viajar, mas meu co-viajante derruba a cabeça em meu ombro e baba de molhar. De leve empurro sua cabeça para a janela e num sobressalto ele acorda deixando cair novamente a cabeça no meu ombro. Tirando isso está tudo bem, tudo perfeito, serão só mais seis horas de viagem.

Vou ao banheiro e quando volto meu companheiro de poltrona havia caído ocupando o meu assento também. Desolado e desalojado sou um novo sem assento. Penso na possibilidade de um MSA – Movimento dos Sem Assento, rio de minha própria loucura. Mas quando voltava do toalete notei uma moça solitária que tal? Abri meu coração a ela e de imediato fui convidado a sentar. Pedi licença ao sentar-me, falamos amenidades, de onde vem pra onde vai, da família a esperar, do namorado que ficou e cousa e lousa. Ela dormiu e não roncou e não babou no meu ombro. Ela cheirava bem e seus cabelos finos prendiam-se em minha barba ainda por fazer. Ela dividiu seu lanche e suas guloseimas de viagem, eu a presenteei com um livro. Qual o nome que ponho na dedicatória? “Autografado ainda, mas que luxo! Ui odeio meu nome, mas escreva aí Joana, Joana D’arc da Silva “. No desembarque sua família à espera e eu sem ninguém. Joana apresentou-me aos familiares frisando sempre, “ele é escritor que sorte a minha!”.

Segui meu caminho a procura de um hotel barato, encontrei. Deixo minha bagagem aqui e vou sacar dinheiro no caixa automático, tudo bem? Saí e sem dinheiro para sacar, comecei a oferecer meu livro de porta em porta. A cidade era Cajati, lugar pequeno, visitei lojas, escritórios, até na polícia rodoviária estadual eu fui. Um policial comprou e ainda ofereceu a um caminhoneiro. Vendi alguns para umas moças simpáticas de umas lojas, retornei ao hotel. O centro comercial da cidade concentrava-se praticamente em uma rua principal, e lá do quarto de onde eu estava via uma igreja evangélica ao lado de um barzinho de viração. Passei parte da noite observando e até acenando para religiosas de um lado e profissionais do sexo de outro. Uma tênue linha divisória espacial as separavam, nada mais do que uma parede de alvenaria. A maior distância era apenas filosófico-dogmática. Mas ambos os lados eram reconfortantes e tinham seu próprio valor.

Numa outra cidade mais adiante já não dei tanta sorte. As pessoas nem tocavam no livro, pareciam temerem alguma espécie de contágio. O único livro que vendi foi pra um rapaz que só contava com um décimo do valor, mas o vi tão interessado que dei a ele um exemplar. Mas eu não tinha onde ficar, então esse moço disse que lá nem havia hotel, que o mais indicado seria procurar a Casa Paroquial e falar com o padre. Neste exato momento o padre passava por ali em sua caminhada noturna. Ele estava um pouco à frente e eu o seguia tentando alcançá-lo, ele olhava pra trás e acelerava o passo, eu caminhava mais rápido e ele então corria. Resumo da ópera, este padre entrou com portão e tudo e trancou-se na casa. Bati palmas mas quem disse que ele atenderia? Acho que traumatizei um pároco. Consegui voltar para Cajati depois de muito negociar com um motorista de ônibus que retornava vazio e já fora de serviço. Lá estava eu celebrando a noite entre a igreja e o prostíbulo pela janela do meu quarto. Um pouco adiante na mesma calçada e direção vejo um corpo encimado por um rosto um tanto quanto familiar. Acompanhei-a com olhar de silêncio e discrição, mas curioso por saber em qual porta ela entraria. Na frente da igreja haviam três moças e a que vinha pela calçada juntou-se a elas, quando por mero estranhamento talvez, uma delas apontou em minha direção. Tive ímpeto de sair da janela, mas firmei o olhar e vi que a recém chegada acenava pra mim, era Joana D’arc. Ela assinalou com o dedo e fez menção de atravessar a rua, então fui ao seu encontro na calçada. No térreo do hotel tinha uma grande lanchonete para a qual nos dirigimos. Bem, naquela noite Joana não retornou à igreja.

luizbucalon

Luiz Carlos Bucalon, nasceu em 12 de março de 1964, na cidade de Maringá-Pr. Em 1980, lançou, em edição independente, o seu primeiro livro de poemas, "Câncer Amigo". Seguiu escrevendo poemas, crônicas, contos, ensaios, teatro, humor, biobibliografias e romance. Foram trinta e quatro títulos publicados, pelo então poeta marginal -- contemporâneo a Paulo Leminnski e outros expoentes. Bucalon, além de escritor e editor, foi também declamador, palestrante e divulgador de sua própria obra, de cidade em cidade, no Brasil e na Argentina. Seu mais recente livro, "Só Dói Quando Respiro", de poemas, é de 2021, publicado digitalmente em formato e-book. Obras (muitas também em espanhol) - Poemas: Câncer Amigo, A Palavra é um Ser Vivo, A Corsária e o Vento Santo, Roda Viva, Madá Madalena, Novas Asas, Um Lapso no Tempo, Uma que não vejo, Outra que não toco, Poema a Quatro Mãos (com Nice Vasconcelos), Escrever é coisa de louco, Bailarina Madrugada, Poeta de Ruas e Bares, Poemarte, Na Barra de Santos, Era eu naquele quadro, A Rosa e o Espinho, Dia Noite e Chuva Por onde Andaluzia, Poeta Cigano, Rodoviárias São Corredores, A poesia diz rimada, Poesia Presa no Espelho, Poema se faz ao poemar Poesia líquida é música. - Romance, conto, teatro, ensaio, crônica: Em Busca do Amor, Lânguida e Felina, O Globalicídio Brasileiro, A Semente do Milagre, Mártires da Imortalidade, A vida entre outras coisas, A Praça da República, O Banco da Praça, Ali Naquele Bar. Saiba na página Home.

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