Narrativa de ficção

As reticências na vida

Neste conto, exploramos o significado das reticências através do texto de Luiz Bucalon. Descubra como esse simples sinal de pontuação pode nos levar a uma profunda reflexão sobre a vida, a fé e o desconhecido.

Conto – Crônica – reflexão

As reticências traduzem o improvável.

Tenho andado tanto por aí de passo em passo, sempre olhando feito um imbecil abismado com tudo e perdido entre tantos nadas.

Você minha cara Mercedes deve estar se perguntando por que é que uso tantas reticências. É que as admiro demais. Elas, as reticências, elas… São divinamente maravilhosas… Nem criadas nem inventadas, elas apenas simbolizam o inalcançável, o inominável, o intangível, o imensurável, o intraduzível, o impossível e o quase improvável. É como aquela tão famosa “espera” de ferro armado que se deixa pra fora nos edifícios que ainda se estão por concluir.

As reticências têm algo muito em comum com Deus, já que este último também é muito utilizado, para não dizer sempre, nas situações das quais nada sabemos, onde tudo fica à mercê da Mercedes (risos). Gostou do trocadilho? Tudo fica por conta do saber ou da imaginação do próximo. As reticências imitam ou talvez até traduzam a vida em sua própria intraduzibilidade, compreende? A vida carece sempre de conclusão. A vida segue espargindo suas reticências… Sempre inconclusa, alheia e rebelde. Nada é de fato acabado, tudo esteve, está e sempre estará em construção. Não esqueça-se que para a vida a construção muitas das vezes passa pelo processo da desconstrução, mas isto deixemos para outro momento. Se voltarmos à minha primeira pergunta bem, eu diria apenas que sou uma ou um comboio de reticências minha cara Mercedes.

Tenho andado tanto por aí de passo em passo, sempre olhando feito um imbecil abismado com tudo e perdido entre tantos nadas. Às vezes passo uma infinidade de tempo olhando pra cima, não sei se para o sol, o céu ou o teto. Para ser sincero em muitos momentos não olho pra nada nem pra ninguém, olho talvez pro alto da minha cabeça por dentro. E o que vejo? Quase sempre, na maioria das vezes não vejo nada. Decepcionada comigo? Não, não espere tanto de mim… Não sou como aqueles mortais iluminados que têm visões redentoras ou apocalípticas, utópicas ou enriquecedoras. Eu mal e mal ingiro, digiro e cago.

Já houve tempo em que eu estava mais pra um cachorro, só não me dava a tombar latas porque acreditava ainda ser gente. Mas olhava muito para as pessoas enquanto comiam na esperança de ser convidado ao lanche. Às vezes apareciam inesperados amigos que me convidavam para uma xícara de café com leite e torta, hummm era maravilhoso! Então conversávamos sobre quase tudo ou quase nada. Creio que por essa razão tornei-me um pouco eloquente, mas muito, muito versado em nadas e coisas nenhumas.

Ah! Mercedes! Você é uma excelente ouvinte! Sentada aí de costas para a parede nada diz, só me observa… Você realmente consegue permanecer calada por muito tempo, mas não em silêncio (risos). É que você de tão quieta dá-me a ouvir o som dissonante de suas engrenagens cerebrais. Tua cabeça minha tão cara Mercedes, é uma indústria de pensamentos tais… Agora por exemplo estás corando, sabe-se lá no que pensas olhando pra mim nesta posição de fidalguia. Daqui donde estou vislumbro o reflexo de tuas sensações… Elas reverberam pelo olhar refletido nos olhos meus. Não fales nada minha amiga, sei porque a vermelhidão espraiou-se em tuas faces.

Mas olha só Mercedes quem está passando pelo outro lado da rua… É o Roberto! Ei Roberto venha cá! Lá vem ele todo faceiro e bem postado! Como vai meu amigo? Há quanto tempo! Conheces a Mercedes sim? Então seguimos os três lado a lado. Roberto é um italiano de cabelos brancos, um excelente mecânico de máquinas de costura, refrigeradores e outros equipamentos. O negócio dele é estar dentro das casas e de suas donas, entenda como quiser. Mercedes não sei porque passou para o meu lado na calçada. O amigo então convidou-nos para acompanhá-lo numas bebidinhas, o que não era de se rejeitar no pleno verão de Camboriú. De leve tomamos umas poucas doses; poucas de conhaque, poucas de vodka e Mercedes umas poucas doses de martini com gelo. Eu não entendo até hoje o porquê de ficarmos bêbados com tão poucas doses repetidas durante um pouco mais de três horas, vá saber…

O galo cantou. O galo era o apelido do despertador do Roberto que providencialmente despertava sempre em cima da hora do botequim. Cocei os olhos, na boca um gosto de cabo de guarda chuva… Não, não eu nunca comi um… Eu mal podia me mexer enquanto Mercedes não tirasse suas pernas robustas de cima das minhas. Engraçado dormimos em cruz! O Roberto atirado sobre um colchão pura espuma na sala. Fila para o banheiro. Eu passei um café amargo e forte.

Roberto era um homem de desejos profundos, era sua utopia dizia ele, ter uma casa que tivesse tantos banheiros quantos fossem os convivas nesta mesma casa. Ele lia o jornal, falava sozinho e fazia palavras cruzadas enquanto voltava à consciência sentado sobre o vaso sanitário. Por mim tudo bem já havia urinado no tanque de lavar roupas! Mercedes creio ter se arrumando por lá, só não perguntei pra não ser mais invasivo do que já havia sido durante a noite, se é que me entendes. Duas horas depois sai o nosso anfitrião lavado, barbeado, penteado e numa toalha enrolado.

Mercedes era uma moça interessante a quem pudesse interessar, não eram muitos os interessados é claro, mas no fundo havia naquela mulher um certo charme, mas era bem no fundo, alí onde só homens sensíveis e bons mergulhadores se atreviam explorar. Ela, uma mulher muito fechada, silente e observadora. Você não sabia se ela o admirava como homem ou se o olhava rindo como se risse de um furão. Seus olhos azuis eram profundos e sua pele macia emoldurada por volumosos e longos cabelos negros. Ela não deixava transparecer se gostava ou não da sua companhia ou de suas conversas, mas sempre que podia olhava penetrantemente no fundo dos seus olhos lhe arrancando de dentro. Em muitos momentos capturei sua beleza e não era pouca. Todos inclusive Roberto, acreditavam termos um caso ela e eu. De certa forma tinhamos algo mas não sei se poderia chamar-se de caso. A verdade é que nós éramos em si mesmos um caso. Ela saia com todos e todas sem distinção, mas somente a mim procurava pra sair, os demais se uniam a nós ao caminhar. Nos entendíamos sem gestos nem palavras, era só no olhar. Quando saíamos juntos ela tinha o dom de abrir portas e eu, de fechá-las. Eu já havia ido em sua casa, um apartamento pequeno e quase central da cidade. Não, ela nunca me convidara pra ir, eu simplesmente ia e ela não dizia nada, ninguém mais se arriscava a ir. Nunca tivemos um acordo tácito ou romântico de vivermos juntos ou coisa do gênero, isto creio a espantaria pra longe, acontecesse o que acontecesse nada era planejado ou combinado. Nos dávamos bem e seu olhar era afetivo e isto era tudo.

Numa certa ocasião estávamos em quatro amigos bebendo na madrugada solta e um deles inicia uma série de indagações a respeito de Mercedes. Qual é a daquela menina hein? Do que ela gosta afinal? Ela curte homem ou mulher? Vocês hão de convir que ela é meio esquisitinha não acham? Então ela virou o assunto da rodada. Permaneci calado só colhendo pérolas, ninguém ali havia captado a real essência da garota. Logicamente os holofotes voltaram-se pra mim nestes termos: “Quem deve saber muito dela é o poeta ali quietão” (risos regados a vinho). Eu não sei mais do que cada um desta mesa, manifestei-me. E quer saber? Ela é. É o quê? perguntaram. Talvez nada do que imaginam e tudo do que não imaginam. Riram-se todos dizendo que eu valia-me de uma licença poética. Taí, não tentem definí-la, rotulá-la ou o raio que os partam, a tenham simplesmente como a um poema. Um poema não pretende a nada, não serve a nada, não lhe cabe rótulos ou significados pois se assim o fosse imediatamente deixaria de sê-lo. Ele simplesmente É, atemporal e asituado. Porque alguém tem que ser algo, alguém jamais será algo e a recíproca é verdadeira. Experimentemos contemplar as pessoas como fatos inusitados e únicos. Eu quando olho para o sol é só a ele que vejo, não vejo um sol amarelo, quente, distante ou imenso, é só o sol e aí reside toda a sua beleza. Uma mulher é uma mulher, desnecessário se faz uma adjetivação, os adjetivos podem lhe dizer tudo menos o que vai naquela mulher. Pediram agora um garrafão de vinho, já não viriam mais garrafas (risos). Sinto falta dela aqui, por certo rir-se-ia de tantas especulações. Naquela madrugada mesma fui até seu prédio, falei ao porteiro e ele abençoou-me com a notícia de que ela havia autorizado a minha entrada em quaisquer ocasiões ou circunstâncias. Subi até o quinto andar e procurei o 505, sentado encostei-me à porta e cochilei.

luizbucalon

O que o autor nos apresenta?

Em seu texto, Luiz Bucalon tece uma bela reflexão sobre o significado das reticências, não apenas como um sinal de pontuação, mas como um reflexo da própria vida. O autor nos convida a pensar sobre:

— O desconhecido: As reticências simbolizam o que está além do nosso conhecimento, o mistério que permeia a existência.
— A incompletude: A vida, assim como as frases com reticências, nunca se encerra de forma definitiva. Há sempre algo mais a ser descoberto, algo que escapa à nossa compreensão.
— A imaginação: Ao utilizar as reticências, o autor nos convida a preencher as lacunas com nossa própria interpretação, estimulando a nossa criatividade.

A metáfora da construção:

Bucalon estabelece uma interessante analogia entre as reticências e a construção de um edifício. Assim como as reticências deixam uma frase em aberto, as estruturas inacabadas convidam a imaginar o que ainda está por vir. Essa imagem nos mostra que a vida é um processo contínuo de construção e desconstrução, onde nada é definitivo.

A relação com Deus:

O autor também estabelece uma conexão entre as reticências e a figura de Deus. Ambos são utilizados para representar o que não sabemos, o que está além da nossa compreensão. Essa comparação nos leva a refletir sobre o papel da fé e da espiritualidade na busca por significado.

Um convite à reflexão:

No texto, Bucalon se autodefine como um “comboio de reticências”, convidando o leitor a fazer o mesmo. Essa afirmação nos desafia a olhar para nós mesmos e para o mundo com um olhar mais questionador e aberto às possibilidades.

Perguntas para reflexão:

— Como as reticências se manifestam em sua vida?
— Quais são as suas maiores incertezas?
— Você se considera uma pessoa mais completa ou em constante construção?
— Qual o papel da fé e da espiritualidade em sua vida?

Conclusão:

“As reticências na vida” é um texto que nos convida a desacelerar, a observar o mundo com mais atenção e a apreciar a beleza do desconhecido. Ao explorar o significado das reticências, o autor nos oferece uma ferramenta para refletir sobre nossa própria existência e sobre o lugar que ocupamos no universo.

E você, o que pensa sobre o uso das reticências na escrita e na vida?

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Luiz Carlos Bucalon, nasceu em 12 de março de 1964, na cidade de Maringá-Pr. Em 1980, lançou, em edição independente, o seu primeiro livro de poemas, "Câncer Amigo". Seguiu escrevendo poemas, crônicas, contos, ensaios, teatro, humor, biobibliografias e romance. Foram trinta e quatro títulos publicados, pelo então poeta marginal -- contemporâneo a Paulo Leminnski e outros expoentes. Bucalon, além de escritor e editor, foi também declamador, palestrante e divulgador de sua própria obra, de cidade em cidade, no Brasil e na Argentina. Seu mais recente livro, "Só Dói Quando Respiro", de poemas, é de 2021, publicado digitalmente em formato e-book. Obras (muitas também em espanhol) - Poemas: Câncer Amigo, A Palavra é um Ser Vivo, A Corsária e o Vento Santo, Roda Viva, Madá Madalena, Novas Asas, Um Lapso no Tempo, Uma que não vejo, Outra que não toco, Poema a Quatro Mãos (com Nice Vasconcelos), Escrever é coisa de louco, Bailarina Madrugada, Poeta de Ruas e Bares, Poemarte, Na Barra de Santos, Era eu naquele quadro, A Rosa e o Espinho, Dia Noite e Chuva Por onde Andaluzia, Poeta Cigano, Rodoviárias São Corredores, A poesia diz rimada, Poesia Presa no Espelho, Poema se faz ao poemar Poesia líquida é música. - Romance, conto, teatro, ensaio, crônica: Em Busca do Amor, Lânguida e Felina, O Globalicídio Brasileiro, A Semente do Milagre, Mártires da Imortalidade, A vida entre outras coisas, A Praça da República, O Banco da Praça, Ali Naquele Bar. Saiba na página Home.

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