Narrativa de ficção

O Pouso das Almas

Conto – Fábula – Ficção científica – Realismo fantástico

Eu me imagino contando pro pessoal, que conversei com uma barata branca, e mais, que estivemos filosofando juntos.

O atendente, olha fixamente para mim por um rápido instante, como se algo inusitado estivesse acontecendo, como se houvesse alguma coisa fora de lugar.

— Boa noite, meu nome é Laus! — Disse ele, com um sorriso que mais parecia um buraco. Aguardávamos a sua chegada senhor Thor – tentando ser simpático e prestativo.

— Muito prazer – respondi, fitando os olhos do sujeito – qual é o nome deste lugar? – emendei curioso, olhando ao redor.

— É Pouso das Almas senhor! — diese ele, os braços flutuando.

— Pouso das Almas? — Perguntei, mais para eu mesmo do que para ele. Olhei para o alto.
Havia algo diferente naquele homem, o que me causava a impressão, de que ele trazia algo escondido. Seu sorriso era um vazio! O olhar saltava-lhe por órbitas sem fundo, o corpo esguio, variava de altura quando por trás do balcão. A pele fina, quase transparente, tornava-o praticamente invisível, sob as luzes mortiças e amareladas do lugar. Senti formigamentos. Estava à flor da pele. Sentia-me como um radar, sinalizando alguma coisa que não sabia explicar.

— Laus, como vim parar neste lugar? — Indaguei, a voz saiu mais baixa do que devia.

— Não posso lhe dizer senhor — disse ele balançando a cabeça. Já havia parado de falar, mas ainda balançava a cabeça.

— Não pode, porque não lhe é permitido dizer, ou por não saber mesmo? — repousei as mãos sobre o balcão frio, de mármore.

— É por não saber, senhor Thor. Não sei se lhe serve de consolo, mas nenhum dos que aqui chegaram, o sabiam tampouco — parecia rir-se da minha ignorância.

— Nas esta você sabe — afirmei tentando sorrir-lhe — e todos saem daqui? Ilesos, quero dizer. — Arregalei os olhos contra os dele.

— Ah! Sim! Claro! — Agora o buraco ficou ainda maior, ele forçou outro sorriso — apenas o período em que aqui permanecem, varia de um para outro, senhor. Fique tranquilo.

O bar, à entrada, era um enorme espaço vazio, com exceção de um balcão em meia-lua, atrás do qual o homem se movimentava, como a flutuar.

— Pois bem senhor, vou acompanhá-lo até o seu quarto para que descanse – disse Laus, indicando com a mão para que eu fosse à frente.

Chegando diante do que parecia uma construção feita de nuvem, ele estacionou.

— Basta estender sua mão e a porta será aberta — fez sinal com a mão.

— Que porta? – eu disse, com aspereza.

— Só estenda a mão por favor — ensaiou fazê-lo, mas parou no ar.

— Que brincadeira é essa? Não há nada aqui — senti-me ridículo. A face quente.

— O vento e o oxigênio, o senhor também não vê, ainda assim tem certeza da existência de ambos, não é mesmo? — disse, outro buraco na cara.

Contrariado, estico o braço, tateando à procura da maçaneta. E Laus intervém:

— Não é preciso procurar, ela não está aí, é na sua mente que ela está, assim como todas as demais coisas. Simplesmente entre no quarto.

Sentindo-me um bobalhão, toco o nada, ao que ele chamava de porta. Abre-se à minha frente, um ambiente amplo e iluminado, carregado de livros.

— Hum! O senhor é de livros! — falou como se solucionasse o mistério da vida, ou da morte, sei lá — eu sou de bar — disse, sério.

Ao entrar, incrédulo, fui tocando em tudo. Ali era a minha casa! Bastava eu lembrar de algum objeto, e ele surgia ali no seu devido lugar. Admirado e confuso, voltei até a porta, e Laus já havia desaparecido. Fiquei ali parado, vendo as coisas aparecerem e desaparecerem, conforme eu pensava ou deixava de pensar nelas. Por um longo instante, estive criança. Brincava… eu apenas brincava!

— Olá! Como você está? — Olho ao redor. Os olhos bem abertos. Aguço a audição, à procura da voz.

— Quem é? Tem alguém aí? Quem quer que seja apareça de uma vez. — Um frio a percorrer-me a espinha. As mãos trêmulas. Os olhos inflados.

— Ei não precisa exagerar! Tamanho homem desse, aí “chorando” feito um bebê? – A voz, vinha de alguém, do vidro fumê da mesinha de centro, diante do sofá. Uma voz estranha. Não era humana. Uma voz pequena, mas sonora, quase musical.

Em pé junto ao bar, dou algumas passadas, ajoelho-me para ver melhor aquilo que, meus olhos apertados, não creem ver.

— Só me faltava essa, agora dei para ouvir insetos falantes!

— Hummm… Você, como sempre mal informado. Eu não sou um inseto, eu sou uma vida. A partir de hoje, libere-se da ilusão da forma.

— Mas você é uma barata não é?

— Nossa como você é observador! — ironizou ela.

— E você sabe quem eu sou? — indaguei.

— Ora, se nem você sabe, como poderia eu saber? — riu-se dele, como se batesse palmas com as antenas.

— E quem disse que não sei quem sou?

— Se soubesse não perguntaria a mim, não é mesmo?

— Interessante!… Essa sua cor… Está no processo de mudança é?

— Não. Eu sou albina mesmo.

— Uauuu! Uma barata albina!!!

— Ora o que há de errado? Você por um acaso tem preconceito de cor? – respondeu ela, com olhar de pilhéria, movendo agilmente a cabeça.

— Só o que me faltava, uma barata albina, e ainda por cima irônica! Como se chama? — Perguntei. Minha testa enrugada.

— Chame-me pelo nome que lhe vier à mente — ela, ela teria dado de ombros, caso os tivesse.

— Que tal… Dorotéia? — sugeriu ele, com um leve sorriso de satisfação.

A barata inclinou a cabeça, como se considerasse a proposta. Movendo lentamente as anteninhas.

— Taí! Gostei! — Disse dando uma caminhada em círculo sobre o vidro. — Você sabe por que está aqui? — indagou, expressando algo próximo a um sorriso.

— Não, por acaso eu não sei nada disso. Mas com certeza, minha amiga, Dorotéia barata albina, irá dizer — respondi, olhando bem para ela. Sorri.

Estava anoitecendo o 13 de maio. A lua era anunciada por seus primeiros fulgores prateados. Desde que aqui cheguei, há uma brisa de asas longas, pairando na mistura do ar. Dorotéia escalou o balcão amarelo queimado, da estante de livros. Sentei na poltrona azul de couro. Um cheiro de flores nativas, de pétalas grandes e espigadas.

— Não é bem assim, nem tudo se sabe por aqui, pelo simples fato de que não nos é permitido saber — disse ela, num tom enigmático.

— Mas que graça tem tudo isso, se não se pode saber de tudo? — retruquei, sentindo a frustração crescer por dentro.

— Aí é que está, você acha que caberia todo o conhecimento dentro de você? — ela se aproximou, quase sussurrando.

— E por que não caberia? Dizem que conhecimento não ocupa espaço — respondi, tentando agir normalmente.

— Se você tivesse certos saberes a mais, do que lhe é possível suportar, e não estou falando de todo ele, por certo você enlouqueceria — explicou, com uma serenidade perturbadora.

— Como assim? Pelo que eu saiba, se enlouquece por outros motivos, e não por se saber demais — arqueei as sobrancelhas.

— Porque o conhecimento, como qualquer outra coisa, tem de ser conquistado aos poucos, e à medida que se está preparado — ela ia e vinha lentamente, enquanto falava.

— E quando e como, se estará preparado? — perguntei ansioso. A mão estendida.

— Toda a balança tem dois pratos, e quase sempre em desequilíbrio. A inteligência e a honestidade. Uma sem a outra, resulta em imperfeição — falou muito segura de si, ela quase ficou de pé.

— Ah, não sei se tenho paciência pra isso não — suspirei, ansioso, o olhar de bobo.

Eu me imagino contando pro pessoal, que conversei com uma barata branca, e mais, que estivemos filosofando juntos. Pensei.

— A sua paciência, ou a falta dela, é o que menos importa. A vida, é infinitamente maior. Você é quem deve render-se a ela, e não o contrário. Não se pode tomar o céu de assalto! — Ela finalizou com uma firmeza inabalável.

Dei uma saída para esticar as pernas. Fui até a recepção e fiquei com Laus. Não sei por quanto tempo permaneci ali. Mas quando olho para o chão, pasmem, ali estava Dorotéia. Laus a viu também. Ambos se cumprimentaram com um lento aceno de cabeça. Dorotéia, com suas anteninhas vivazes, disse que sentia a falta de seu amigo, então saiu a procurá-lo. Compreendendi o grande esforço que ela fizera, a quantos riscos ela esteve exposta, mesmo nesse curto trajeto. Despedi-me do recepcionista. Abaixei-me, colei as costas da mão ao chão, convidei a baratinha para que subisse nos meus dedos. Levei-a em segurança para casa. A deixei sobre a soleira da Janela.

— Odeio quando você me olha desse jeito — disse ela ajeitando as asas.

— De que jeito? — Franzi a testa.

— Assim com esse olhar acusador. Parece que sou a culpada por tudo o que acontece por aqui — ela devia estar fazendo beicinhos agora.

— Pelo que acontece não, mas é estranho como você torna tudo mais nítido. Você faz tudo aflorar, como se tudo viesse à tona ao mesmo tempo.

— Tudo o quê? — interrompeu ela.

— Ora tudo o que estava bem guardadinho sob o imenso tapete.

— Talvez porque meu mundo seja bidimensional. Sempre estarei mais junto aos tapetes. Para mim só existem comprimento e largura. Para você tem também a altura. E olhando para o alto, você sempre tropeça nas coisas de baixo. Mas você tem razão sim, eu sei de muito mais — pude ver sua cabeça a mover-se.

— Mas como consegue captar tanta informação, se muito pouco sai desse quarto?

— E nem preciso sair. Disponho de uma imensa e eficiente rede de informações.

— E percebo que, exerce uma certa liderança, ou pelo menos alguma influência, sobre sua população comum.

— É, digamos que sim. Mas não é apenas por pertencermos à mesma população. O que conta na verdade, é o interesse comum.

— E qual é esse interesse comum? — perguntei. As sobrancelhas erguidas.

— A sobrevivência do grupo, esse é nosso único e natural interesse. Diferente de vocês, que se dirigem por muitos e diversos interesses. Muitos deles diferem totalmente dos motivos básicos e naturais, como o da subsistência, por exemplo — empertiga-se ela, com uma pata ao alto. Um ar doutoral.

— Você está tentando dizer-me algo mais, não está? — Talvez aquele inseto, que já não me era um simples inseto, pudesse dizer-me ainda mais.

— Uauuu como você já me conhece! E olha que eu não faço o tipo previsível hein! — A barata riu de mim.

— Nós somos imprevisíveis. A começar pelo relacionamento amistoso entre um homem e uma barata — disse eu, procurando olhar bem para aqueles olhinhos, da cadeira onde eu sentava.

— Eu arriscaria a dizer-lhe, que ultrapassamos o relacionamento amistoso, é uma história quase fraternal, não acha? — Falou- me com as antenas cruzadas. — Eu sinto-me um pouco homem, e você, com certeza, um pouco barata — um raio de sol aportou à janela. Ela semi-invisivel naquele instante.

— E isto leva-me a dizer que, nem você e nem eu agimos sob interesse comum apenas — sorri ao dizer-lhe.

— Ora como assim? — A antena torta em interrogação.

— Desde que você não é um homem, e eu não sou uma barata, qual o interesse comum que teríamos a defender?

— Neste ponto você está certo — disse ela, em pé, encostada no portal.

— E por que eu a protegeria, assim como tenho feito, senão tenho nada em comum a você?

— É por isso que somos amigos, por você ser diferente. Você não age exclusivamente pelo seu próprio interesse. Por esta razão, digo que somos mais do que amigos. Você me vale mais, do que minhas iguais. As outras baratas, agem em relação a mim, movidas por um impulso instintivo de preservação da espécie. Assim ajo para com elas também. É o interesse comum. Entre você e eu, não há qualquer interesse. O que eu poderia fazer para protegê-lo? Qual a vantagem você teria em manter-me viva ao seu lado? Nenhuma. Você o faz de modo gracioso, gratuito. Vale mais para mim do que toda a minha espécie. — disse, os olhos brilhando.

— Acho que não é bem assim… — Meu dedo indicador junto aos lábios. O olhar estreito.

— É sim, — enfatiza ela — basta eu dizer, que não era aceita nem na minha própria colônia e família.

— Agora fiquei curioso, como é que é? Explique melhor — meus olhos dilatados de curiosidade.

— Eu já nasci branca. E isso não tem nada a ver com a ecdise, a fase que as baratas mudam de pele, devido ao seu crescimento. Eu sou albina, o que também é uma mentira, pois nós baratas não possuímos melanina no corpo. Bem, não sei porque raios, eu nasci branca e assim permaneço até hoje. E essa cor, muito dificultou a minha sobrevivência. — falou com a cabeça baixa.

— É sério isso? — meu olhar incrédulo e consternado. Baixei os olhos, sentindo muito.

— Todos sabem qual é a cor natural, comum a todas as baratas. Agora, me imagina como a única diferente entre todas as demais, era eu a aberração da família, da colônia, da espécie. Escapei, não sei porque sorte, de ser morta já ao nascer. Foram tantos os ataques, as agressões, desejei mesmo nunca ter nascido. Eu, a defeituosa, a vergonha, a falha na espécie. Um mau agouro, uma peste, talvez contagiosa. — disse, os olhos esbugalhados de revolta.

— E todos se afastavam de você? — Indaguei, passando o dedo por suas asas.

— O afastamento seria até um lenitivo para mim. Foi tudo o que desejei desde então. Eu era preterida, humilhada e até mesmo agredida fisicamente, até ser expulsa da colônia. — disse, rememorando ao caminhar em círculo.

— Expulsa? — Repeti. Silêncio. O corpo voltado à frente.

— Sim exilada, banida, desterrada — as hastes abaixadas. A voz abaixando até o balbúcio.

— Uma barata desbaratada — pensei alto –desculpe sei que foi de mal gosto — dei um tapa em minha cabeça.

— Isso não é nada — disse, movendo as asas e a cabeça rapidamente.

— Imagino como fora difícil a sua existência. — As mãos cruzadas segurando os joelhos.

— Sim, a partir do banimento, não sabia quem de fato eu era. Se não era considerada uma barata, então o que eu era? Eu sabia que não podia ser outra coisa. Passei a vagar como uma coisa, que se parecia a uma barata. É claro, tudo piorava sempre mais. Uma barata branca, não tem a mesma chance de passar despercebida. Viam-me de longe, não faltaram pés humanos, venenos, chineladas e outros predadores no meu encalço. — Lamentou, as antenas dobradas sobre a cabeça. Os olhos cerrados.

— Mas se você não fosse diferente, e não só na cor, você não estaria aqui agora. E quando digo, diferente não só na cor, quero dizer também, que o fato de ter passado por tudo isso, a fez ser quem você é agora. — Forcei um sorriso, saindo amarelo.

— Aí vem a pergunta que nunca quis calar: e quem eu sou agora? — Fitou-me os olhos negros, estagnados.

— Uma barata superior. Uma barata que, na busca da sobrevivência, evoluiu. Desenvolveu qualidades e atributos, não franqueados a uma barata qualquer. — Falei com sinceridade.

— Você é um grande amigo Thor! E não seria exagero algum, dizer que você é o melhor acontecimento em toda a minha vida! — Disse ela, a patinha levantada.

— Tá bom, tá bom! — eu disse, dando um tapa no ar — Não vamos chorar agora — digo sorrindo, enternecido. Os lábios trêmulos.

— Falo sério. Não conheço sua vida pregressa. Mas o Thor que conheço hoje, também deve ter passado por uns maus bocados.

— É. Todos temos nossas histórias – eu disse, dando de ombros. — Mas me conta uma coisa… — Calei na metade. Silêncio. A boca ainda aberta.

— O que você quer saber? — Indagou solícita.

— E como uma barata, outrora escurraçada pelos seus, hoje exerce liderança sobre outras colônias, sendo ouvida e acatada respeitosamente?

— É simples — falou unindo duas patas dianteiras.

— Não creio que algo tenha sido simples ou fácil pra você — interrompi, erguendo as pálpebras.

— Usei a diferença a meu favor. — Ela disse, bracinhos abertos.

— Como assim? Explique melhor. — Indaguei, as mãos nos cabelos.

— Ora, tudo o que aprendi no decorrer da minha existência, mesmo que a duras penas, teria que servir para algo de bom, não é? — Sorriu girando a cabeça agilmente.

— Concordo, é assim que é. Mas seja mais específica — apertei os olhos em atenção.

— Chorei pela minha diferença. Sofri pela indiferença dos outros. Até perceber que o que eu tinha, era a diferença. Era o meu patrimônio. Então, fiz dela o meu ponto de partida. — Explicou, olhando acima dos meus olhos.

— Ainda não entendi — chacoalhei a cabeça.

— De início foi um trabalho árduo. Tudo requer persistência. Fiz um “trabalho formiguinha”, apesar de barata — riu-se com o trocadilho. –Eu sabia dos locais mais seguros e abundantes. Comecei então, a ajudar uma e outra barata em risco. Primeiro com alimentos, depois com segurança, longevidade e procriação. Assim fui formando um pequeno círculo de amizade. Mas logo descobri, que comida e conselho acabavam muito rápido. Logo elas estavam novamente famintas, e penderiam pro lado que mais rápido, e mais facilmente, respondesse a essas necessidades. Até porque, eu continuava sendo a diferentona, a estranha. Era mais ou menos aceita pelo fato de ajudá-las, enquanto precisassem. — Ela deu um giro no corpo. Roçou uma haste à outra.

— E então… — acelerei. O semblante sério.

— Entao passei a usar a minha diferença, como uma vantagem. Não mais como uma fraqueza ou deformação, mas como uma forma de poder. Eu dizia, a cada uma em particular, em tom de confidência, que vinha de uma linhagem particular. Que sondava e analisava, entre todas as baratas, aquelas que seriam as escolhidas para um salto na evolução da espécie. Sussurrava a elas, que este salto as tornaria mais fortes, saudáveis, ágeis e inteligentes. E que outras faculdades lhes seriam desenvolvidas durante esse percurso. — A antena direita se movimentava à medida em que falava, pausadamente.

— E esse processo não seria mais rápido se você falasse a muitas de uma só vez? — disse, flexionando a sobrancelha.

— Sim. Seria muito mais rápido, porém, menos eficaz. Evitei o confronto direto com a turba. Eu estava me fortalecendo. Não pretendia correr o risco de ter uma ou mais colônias inteiras contra mim. — Ela disse, caminhando em círculo. As antenas juntas.

— Entendi. Você foi perspicaz — falei, enquanto a pegava na palma da mão, levei-a para o balcão da estante.

— As coisas que nos são ditas em particular, numa demonstração de confiança, nos tornam especiais. E o fato de sentirem-se especiais, faria com que levassem esta boa nova, também à outras, e as outras à outras, numa reação em cadeia. Busquei cercar-me dos mais diversificados conhecimentos. Precisava retroalimentá-las, com outras importantes “confidências”. Logo estávamos em grupo, e esse grupo, tornou-se num corpo missionário, silencioso… até que…

— Continue, até que… — Cruzei as pernas, o olhar atento.

— Até que a colônia como um todo, pasou a reivindicar como direito, o acesso a tais conhecimentos, e como dever, o de segui-los à risca.

— Então você se tornou numa profetiza, é isso? — eu disse, um sorriso largo. Eu compreendia agora.

— Eu não diria isso, mas uma visionária talvez. Não há qualquer indício de religiosidade, ou coisa que o valha, em nosso meio. Eu trabalho com ciência. Ciência comprovada na prática. E a evolução é algo real, palpável, realizável e replicável numa só vida.

— Dorotéia, tenho ainda uma curiosidade, mas se for difícil para você falar disso, esqueça…

— Pergunte — interrompeu ela. Encostada contra a capa de um livro.

— Sua prole, seus filhotes, são brancos como você? — Perguntei, a voz baixa, inseguro.

— Não. Eu jamais me reproduzi — disse de cabeça baixa.

— E nunca desejou?

— Uma coisa é desejo, outra é opção. Sempre desejei, mas optei por não fazê-lo, por razões óbvias. — Ela afastou as patas da frente, erguidas.

— Entendo, quantas mais passariam por tudo o que você passou, não é mesmo? — Levantei-me da poltrona. Flexionei o corpo. Respirei fundo.

— Não seria justo. — Encerrou Dorotéia. Suas antenas filiformes aparelhadas uma à outra.

Era tarde da noite. Fomos dormir.

Oito horas da manhã, saio do banho. Dorotéia, me olhava da porta do banheiro, sem nada dizer. Me vesti e saí despedindo-me. A baratinha acompanhou-me até a saída. Ela olhava enquanto eu me afastava. Depois, sozinha, voltou para dentro. Ela caminhava mais devagar do que de costume. Por alguma razão, não sentia-se bem. Era como se só agora sentisse o peso da idade. Estava cansada. Suas forças exauridas. Pensou muito… tudo o que vivera desde o nascimento… A memória ascendia-lhe aos olhos. Um desfile de infortúnios e tristezas, superações e alegrias, aprendizados e vitórias… Ela saboreou cada instante vivido em minha companhia! Como como se esse período fosse o real coroamento da sua vida. Tudo valeu a pena, sussurrou ela. Juntou suas asas, caminhou lentamente olhando para todos os lados, até chegar no seu cantinho. Inspirou todo ar que lhe fosse possível… exalou tudo bom devagar… ainda mais uma vez pensou em Thor. Acomodou-se, quietinha… e cerrou seus olhos para sempre.

luizbucalon

O Conto e seus temas

O conto apresenta uma narrativa intrigante que mescla elementos de ficção científica, filosofia e drama pessoal. A protagonista, Dorotéia, é uma figura complexa e fascinante, que carrega consigo um passado misterioso e uma visão de futuro ambiciosa. A história levanta questões sobre a natureza da consciência, a evolução, a ética, o preconceito e o significado da vida.

Análise

Temas: Evolução, consciência, preconceito, liderança, ética, isolamento, solidão, morte, aceitação.

Personagens: Dorotéia é uma personagem rica em nuances, que demonstra inteligência, determinação, resiliência e um profundo senso de propósito. O narrador, por sua vez, funciona como um confidente e testemunha dos acontecimentos.

Estrutura narrativa: A narrativa alterna entre diálogos e reflexões internas, criando um ritmo envolvente e aprofundando o desenvolvimento dos personagens.

Ambientação: O ambiente, embora não explicitamente descrito, cria uma atmosfera misteriosa e intrigante, com elementos de um mundo paralelo ou onírico.

Sugestões para análise profunda

A natureza da consciência: O que define a consciência em Dorotéia? Ela é uma forma de inteligência artificial, um ser híbrido ou algo completamente diferente?

O papel do preconceito: Como o preconceito molda a vida de Dorotéia? Qual o impacto do isolamento e da discriminação em sua personalidade?

A liderança de Dorotéia: Como Dorotéia consegue transformar sua diferença em uma força positiva e influenciar outros?

O significado da vida: Qual o sentido da existência para Dorotéia? A morte representa o fim de uma jornada ou o início de uma nova fase?

A relação entre o narrador e Dorotéia: Qual a natureza da conexão entre o narrador e Dorotéia? Existe uma relação de amizade, admiração ou algo mais profundo?

Perguntas para o leitor

— Qual a sua interpretação sobre a frase “Tudo valeu a pena” para Dorotéia?
— Como você vê a relação entre a cor de Dorotéia e seu papel de líder?
— Qual o significado do “Pouso das Almas”? É um lugar real ou metafórico?
— Como você imagina o futuro da colônia de baratas após a morte de Dorotéia?
— Quais são as lições que podemos aprender com a história de Dorotéia?

Convite para comentar

O conto de Dorotéia nos convida a refletir sobre questões profundas sobre a natureza da existência, a importância da aceitação e o poder da transformação. Compartilhe suas impressões sobre a história e suas interpretações. Quais aspectos mais te chamaram a atenção?

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Luiz Carlos Bucalon, nasceu em 12 de março de 1964, na cidade de Maringá-Pr. Em 1980, lançou, em edição independente, o seu primeiro livro de poemas, "Câncer Amigo". Seguiu escrevendo poemas, crônicas, contos, ensaios, teatro, humor, biobibliografias e romance. Foram trinta e quatro títulos publicados, pelo então poeta marginal -- contemporâneo a Paulo Leminnski e outros expoentes. Bucalon, além de escritor e editor, foi também declamador, palestrante e divulgador de sua própria obra, de cidade em cidade, no Brasil e na Argentina. Seu mais recente livro, "Só Dói Quando Respiro", de poemas, é de 2021, publicado digitalmente em formato e-book. Obras (muitas também em espanhol) - Poemas: Câncer Amigo, A Palavra é um Ser Vivo, A Corsária e o Vento Santo, Roda Viva, Madá Madalena, Novas Asas, Um Lapso no Tempo, Uma que não vejo, Outra que não toco, Poema a Quatro Mãos (com Nice Vasconcelos), Escrever é coisa de louco, Bailarina Madrugada, Poeta de Ruas e Bares, Poemarte, Na Barra de Santos, Era eu naquele quadro, A Rosa e o Espinho, Dia Noite e Chuva Por onde Andaluzia, Poeta Cigano, Rodoviárias São Corredores, A poesia diz rimada, Poesia Presa no Espelho, Poema se faz ao poemar Poesia líquida é música. - Romance, conto, teatro, ensaio, crônica: Em Busca do Amor, Lânguida e Felina, O Globalicídio Brasileiro, A Semente do Milagre, Mártires da Imortalidade, A vida entre outras coisas, A Praça da República, O Banco da Praça, Ali Naquele Bar. Saiba na página Home.

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