Entre o início e o fim há o meio
Conto realista – Escrita reflexiva
Ele foi prestar exame para conquistar uma vaga numa universidade, sentia-se orgulhoso e sobretudo vitorioso. Foram tantos os percalços quanto foram suas lutas e persistência…
Estudou até a sétima série do ensino fundamental apenas. Os tempos eram difíceis, ele era filho único em uma família pobre. Desde os seus sete anos depois que saia da escola mal almoçava e já ia para o trabalho. Seu trabalho consistia em primeiramente engraxar sapatos e tempos depois em vender salgadinhos, quitutes que sua própria mãezinha preparava.
Todos os dias Impreterivelmente às treze horas lá ia ele para a rua sob o peso da caixa de engraxate de madeira onde os homens botavam os pés, ou da cesta de vime e depois da caixa de isopor, da onde ele servia o alimento aos seus fregueses também trabalhadores. Isto prolongou-se até seus catorze anos, todos os doze meses de cada ano, seis horas por dia.
No seu décimo quarto aniversário um sabor de orgulho e novidade de vida ao tirar sua primeira Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) num órgão do Ministério do Trabalho.
Logo conseguiu seu primeiro emprego numa empresa conhecida. Àquelas alturas sentia-se muito importante ao receber seu salário de rapaz trabalhador. Sua mãe já separada do seu pai à época, pegava o dinheiro já à saída do banco, as cédulas nem esquentavam em sua mão.
Daí em diante não pôde mais continuar os estudos, os horários eram incompatíveis e ele tinha suas responsabilidades de “arrimo de família”, status este que até o isentou da obrigatoriedade de prestar serviço militar ao mesmo tempo em que negava-lhe uma grande oportunidade profissional e talvez, de ascensão social.
Bem, doravante suas oportunidades de trabalho foram de porta em porta, de braço em braço, de bico em bico.
Mas depois de tantas e duras penas no semi analfabetismo formal, chegou um momento a que nada mais lhe escaparia, batia a mão no peito e dizia para si mesmo “agora depende só de mim e de mais ninguém”. Estava feliz, exultante e furioso até, uma fúria de vencer, uma gana que vinha-lhe desde as tripas.
Acordou cedinho mal clareava, ainda esperou algum tempo pelo “cata-pobre”, o transporte coletivo local. Estava chovendo torrencialmente, chegou bem mais cedo aos portões de entrada. Os minutos e os segundos escorriam preguiçosamente adormecidos sob aquela marquise, e ele com as roupas molhadas. Em pensamento repetia “Agora é comigo, é avançar ou avançar, é ganhar ou ganhar, não há outro resultado possível ou pelo menos aceitável”.
Abriram-se os portais da liberdade e da autossuficiência. Um medo e uma insegurança tão grandes agigantavam-se dentro de si. Um sentimento de solidão acometia-lhe os nervos, os músculos e a mente de tal forma que travou quase batendo em retirada. “Não”, – disse de si para consigo – “você não vai amarelar agora, não vai morrer na praia, não na reta de chegada não. Não caia nessa babaquice que isto não é pra você. Coragem homem coragem”.
Passaram-se os dias e ele ali persistindo, perseverando… Estudou por noites e madrugadas a dentro, mas valeu porque terminou, respondeu, concluiu, conferiu e foi muito bem, digno de um primeiro colocado. “É agora ou nunca mais!” – gritou por dentro.
Resumo da ópera: Nada, nada se deu, nada valeu, não conseguiu. Mais uma vez a vida mostra-lhe a marretadas o seu lugar no “Quase”. Quase isso, quase aquilo, quase aquilo outro; mas no mundo não há lugar para o quase, só para o que é ou para o que não é.
Ele com cinquenta e nove anos, há menos de três meses para o sessenta, depois de tantos dissabores e lutas não encontrava nem lugar, nem entrada e nem saída possível para si. Com quase sessenta anos e depois de tudo o que suportou resignado e venceu calado, é derrubado por uma caneta. Por uma caneta apenas.
— Sentimos muito, a caneta que o senhor utilizou não é apropriada e nem permitida neste concurso. A sua caneta não era “esferográfica preta”.
“Sentimos, sentimos, ora quem sente e sentirá essa porrada pro resto da vida sou eu”.
Mostrou um dos livros de sua autoria com grande sucesso até, e todos ali reconheceram o seu valor literário. Mostrou-os então que o original do mesmo era um amontoado de papéis dos mais diversificados que vão desde guardanapos de bar, passando por papel de embrulho até folhas de sulfite e pasmem, escrito com canetas esferográficas, hidrográficas, lápis e até carvão.
— Está certo, o senhor foi muito bem mesmo, com certeza estaria entre os primeiros lugares no Brasil. Por essa razão o senhor poderá concorrer novamente daqui a seis meses a contar desta data.
Nota de Falecimento: É com muito pesar que noticiamos a morte do senhor Sebastião da Silva Brejeiro no dia do seu aniversário onde completaria sessenta anos. O falecido não tinha familiares e os amigos que velam seu corpo enternecidos com a perda de um grande homem, sofrem do ressentimento pelo amigo não ter realizado o sonho que há tanto acalentara, o de ingressar numa universidade.
Em sua lápide o epitáfio: “Entre o início e o fim há o meio”.
luizbucalon
4 Comentários
GEDIEL PINHEIRO DE SOUSA
Muitas vezes trivialidades suplantam o essencial…vencido por um acessório que deveria ser apenas acessório, mas o puritanismo cosmético das regras o elevou à categoria de juiz do destino alheio.
Triste fim de um sonho.
Luiz Bucalon
muito obrigado por sua apreciação!
Myriam Britto
Excelente texto para reflexão sobre o que deve ser sublinhado e valorizado de fato na vida.
Uma caneta reprova um sonho. Irremediávelmente.
Luiz Bucalon
É verdade. Muito obrigado pela sua relevante visita!