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Eneida, de Fernando Dezena

Arrastou a mão puída sobre a madeira da mesa, sentindo-a, e olhou pela janela perscrutando o tempo, esperando a aurora, como se, a qualquer momento, Eneida fosse se levantar para passar o café. Cheiro encrustado na memória. Pela porta da cozinha, em fresta, o jardim perdido. Pragas que venceram a guerra, outrora alegre de, em todas as manhãs, correr os canteiros, descobrindo de onde vinha o broto e extirpá-lo antes que afogasse a roseira. Ela não mais existe, sua flor preferida não mais existe, as ervas daninhas deixaram, apenas, um estreito caminho para o portão. Caminho do mundo. Pensou em sair para a rua e correr feito criança. Não pôde. Há muito as pernas não permitem. Eneida não se levanta e o dia começa a pipocar com o apagar da noite, o canto dos pássaros e o barulho da rua. Não quer ouvir os pássaros, nem o barulho das ruas, quer ver Eneida se aproximar, beijar-lhe de leve a boca e dizer bom-dia. Depois, o café, o pão fresco na varanda deixado, o leite, a manteiga, a bolacha que, com cuidado, fez no dia anterior. E os pensamentos se foram no cair da noite, a dor latejante nas costas, e Eneida tarda em levantar. O jornal, como o seu amor, demora. As notícias, as distrações, o horóscopo. O que reservaria seu signo para aquele dia? Talvez o número da sorte, a sorte que desde menino não veio. O trabalho, o ônibus, o acidente, a dor lancinante dos ossos em pedaços. As pernas que não mais sente, o desespero, os cuidados de Eneida. Por que não se levanta para preparar o café? O tempo de chuva que no céu se arruma, não tarda. A água em bica cai do telhado, molha o quintal, o que restou do jardim, a rua, a cidade, os carros, os transeuntes apressados. E essa saudade de beijo. As mãos de Eneida que tardam, a voz de Eneida em silêncio, o frio da ausência.
É uma borboleta que vi pela porta? Amarela, azul, verde, sim, uma borboleta entrou e foi ao quarto. Talvez, chamar Eneida. Nunca gostou do meu jeito de acordá-la. Talvez, a borboleta o faça. Eneida é destemida, não tem medo de insetos. Ao ler Kafka, ria-se de Gregor. Acordará em bocejos, sei, e virá para o café, que tarda. Certa vez, fiz um desenho no papel e lhe entreguei. Prova de meu amor – disse-lhe. Ela sorriu tão lindamente, mas não sorriso de boca, nem de dentes, sorriso de alma. Senti vivamente o brilho de seus olhos mudarem e me deu um abraço tão apertado que quase perdi o fôlego. Não pela força de Eneida, braços frágeis, pelo fogo que me subiu pelo estômago. Nos beijamos a tarde toda. Verdade! Faça um desenho para o seu amor, coisa de criança, entregue com olhos de verdade. Exato, é só um instante e o mundo se acaba. A hecatombe nuclear e o seu desenho no papel. Guardou dentro do livro de poesias da Adélia Prado. Um dia, abriremos na página e leremos o poema. Não hoje! — disse-me com a voz lânguida. Por que me lembrei, agora? Senti uma vontade quase incontrolável de pegar o livro e ler o poema, mas não tem graça sem Eneida. É tarde, tão tarde, e não ouço os passos dela pelo corredor, pela casa, indo ao banheiro ao se levantar. Sempre chega na cozinha com a boca de alecrim. Beija-me, em bom-dia, jogando os longos cabelos negros para o lado. Quer saber se dormi bem, se tive algum sonho. Não acredita quando nego. Espere, talvez com uma linda mulher — afirmo para provocá-la. Eneida sorri e pergunta com suavidade: Comigo? Por que não se levanta e vem para o café? Eneida tarda. Talvez esteja acordada na cama, fazendo preguiça, pensando na vida. Eneida é misteriosa quando pensa na vida. Se a descubro assim, me desconcerto. Quero logo interromper seus pensamentos, trazê-la para o meu mundo, para perto de mim. Amo tanto Eneida que sou capaz de uma loucura. E Eneida tarda e não vem para o café. Viro a cadeira na cozinha, esbarro na xícara, que vai ao chão. Passa-me, em pensamentos, que Eneida chegará apressada e me advertirá pelo desastre. Mas ela não vem. Empurro-me pelo corredor até o nosso quarto e olho a cama vazia. O travesseiro de Eneida, impecável, as cobertas.

Fernando Dezena

Luiz Carlos Bucalon, nasceu em 12 de março de 1964, na cidade de Maringá-Pr. Em 1980, lançou, em edição independente, o seu primeiro livro de poemas, "Câncer Amigo". Seguiu escrevendo poemas, crônicas, contos, ensaios, teatro, humor, biobibliografias e romance. Foram trinta e quatro títulos publicados, pelo então poeta marginal -- contemporâneo a Paulo Leminnski e outros expoentes. Bucalon, além de escritor e editor, foi também declamador, palestrante e divulgador de sua própria obra, de cidade em cidade, no Brasil e na Argentina. Seu mais recente livro, "Só Dói Quando Respiro", de poemas, é de 2021, publicado digitalmente em formato e-book. Obras (muitas também em espanhol) - Poemas: Câncer Amigo, A Palavra é um Ser Vivo, A Corsária e o Vento Santo, Roda Viva, Madá Madalena, Novas Asas, Um Lapso no Tempo, Uma que não vejo, Outra que não toco, Poema a Quatro Mãos (com Nice Vasconcelos), Escrever é coisa de louco, Bailarina Madrugada, Poeta de Ruas e Bares, Poemarte, Na Barra de Santos, Era eu naquele quadro, A Rosa e o Espinho, Dia Noite e Chuva Por onde Andaluzia, Poeta Cigano, Rodoviárias São Corredores, A poesia diz rimada, Poesia Presa no Espelho, Poema se faz ao poemar Poesia líquida é música. - Romance, conto, teatro, ensaio, crônica: Em Busca do Amor, Lânguida e Felina, O Globalicídio Brasileiro, A Semente do Milagre, Mártires da Imortalidade, A vida entre outras coisas, A Praça da República, O Banco da Praça, Ali Naquele Bar. Saiba na página Home.

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